404 ANOS

Os preciosos palácios de porcelana

Nos 404 anos de São Luís O Imparcial foi investigar porque o Centro Histórico da cidade é especial

Em 1997 o mundo reconheceu o que os maranhenses já sabiam: São Luís, e em especial o Centro Histórico, eram preciosos. A Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura – UNESCO concedeu à cidade o título de Patrimônio da Humanidade, reconhecendo a história e cultura de um povo miscigenado e vibrante como o brilho dos azulejos banhados pelo sol da cidade. A cidade havia sido tombada como Patrimônio Nacional em 1975, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.
E são eles, os azulejos, talvez o maior símbolo de São Luís, afinal ela é a cidade dos azulejos, ou dos “pequenos palácios de porcelana”, como dizem os franceses. Segundo o consultor do Iphan e membro da comissão que levou o pleito de São Luís para a UNESCO, o arquiteto Phelipe Andrès todo o processo até chegar até a certificação foi de momentos de suspense e muita torcida.
Em Busca do Selo
Em conversa com O Imparcial, Andrès, que participou como coordenador do projeto de restauração do Centro Histórico, Reviver, contou que em novembro de 1996 uma equipe da ong. ICOMOS visitou o Centro Histórico de São Luís para avaliar se a cidade tinha mesmo condições de pleitear o selo. Ele explica que a cidade tinha de ser prioridade na lista do país, lugar onde foi devidamente colocada em 96. A equipe tinha brasileiros entre os membros, mas era chefiada pelo arquiteto argentino Júlio Angel Moroni.
Felipe Andres
“Eles fizeram uma visita que nós não podíamos divulgar para não ter nenhum tipo de de pressão. Eles passaram uma semana observando tudo. Essa comissão ficou muito impressionada e deu um parecer para a UNESCO recomendando que São Luís fosse avaliada”, contou Andrès.
Em julho do ano seguinte houve a primeira reunião Paris, com o bureau executivo da Unesco. Enquanto todo o conselho é composto por 25 países, esse pequeno grupo tem apenas sete, mas o que se resolve nessa reunião preliminar pode determinar o futuro da cidade em busca da certificação.
“Esse foi o momento mais delicado, porque se essa câmara técnica aprova dificilmente o plenário que se reuniria no final do ano, em dezembro, iria contrariar”, comentou o arquiteto maranhense.
Em dezembro houve a reunião definitiva com todos os 25 países que fazem parte da comissão da Unesco. Em 1997 ela aconteceu em Nápoles, na Itália, e a aprovação de São Luís estava condicionada a um estudo comparativo com outras cidades da América Latina. “O estudo, de um arquiteto argentino chamado Ramon Gutierrez, não estava pronto, então a cidade não seria avaliada, mas nosso grupo do Brasil se reuniu e uma arquiteta brasileira do Icomos, Dora Alcântara fez uma sugestão: São Luís era a única cidade de origem portuguesa que estava dependendo do estudo, todas as outras eram espanholas, então ela disse ‘vamos pedir que São Luís seja dispensada desse estudo, já que são patrimônios de origens diferentes’. Então arriscamos”, lembrou Phelipe Andrès.
A sugestão foi aceita e São Luís estava novamente no páreo de 1997 com mais 43 sítios, até que mais um suspense. Em meio à exibição de tomadas aéreas da cidade histórica, dois prédios modernos se destacavam, os edifícios do INSS e do Banco do Estado, apontados pela delegada da Grécia. “Quem garante que outros não surgirão?”, questionou, segundo relatos do arquiteto maranhense. Os temores foram esfriados pelo presidente da reunião, que ressaltou que os prédios haviam sido erguidos antes do tombamento federal em 1974.
“Então, passados os sustos, em 6 de dezembro de 1997 São Luís foi consagrada na lista do Patrimônio da Humanidade. Foi uma emoção muito grande. É um certificado de qualidade importantíssimo, é como se fosse uma ISO 9000 da cultura. Não fomos nós que dissemos, foram os melhores especialistas do mundo que olharam aqui e disseram ‘isto é uma das grandes obras da humanidade nessa região entre o séculos XVIII e XIX é uma herança importantíssima que tem de ser preservado para as futuras gerações”, ressaltou o consultor do Iphan.
Reflexos da sociedade
Os casarões de São Luís, as ruas de paralelepípedos abauladas, seus lampiões, fontes e lendas, recontam século após século a história da miscigenação de um povo que começou em 1612, com a construção de um forte de madeira, no mesmo ponto onde hoje as balaustradas do Palácio dos Leões vigiam a fozes dos rios Anil e Bacanga.
Colonizadores europeus, as 27 tribos nativas e os escravos trazidos da África são as bases do que hoje é o povo maranhense, e o tempero de uma cultura sem par no mundo. “São Luís tem uma atmosfera única, e essa memória foi edificada no casario azulejado, nas ruas de paralelepípedos. Dá uma sensação de cronotopo que nos remete às falas de Josué Montelo, do Negro Damião, ou O Mulato de Aluísio de Azevedo”, explanou a turismóloga e mestre em história, Klautenis Guedes.
As relações sociais entre os três macro grupos foram eternizadas na configuração espacial dos casarões das famílias ricas. Como explicou Guedes, que também é professora no departamento de Turismo da Universidade Federal do Maranhão, o quarto das moças solteiras, por exemplo, “não tinha janelas, enquanto o quarto dos rapazes ficava próximo às senzalas”, retratando uma sociedade machista e patriarcal, onde a exploração e submissão da mulher ia além dos trabalhos forçados, passando pela violência sexual.
Mas o negro, reforçou Guedes, “contribuiu para as particularidades do Maranhão de forma ativa, mesmo na condição de escravo em uma sociedade e arquitetura dominadas pelo homem branco”.
O passar do tempo
Se os primeiros séculos tiveram influência arquitetônica quase que exclusiva dos portugueses, sendo São Luís uma releitura da Lisboa reconstruída pós terremoto, com seus azulejos que serviam de adorno, mas também de proteção térmica para o calor da região, bacias de sacada e passeios públicos, o século XIX viu nascer a influência arquitetônica de povos de uma outra ilha, dos ingleses, como explicou o superintendente doo Iphan no Maranhão, Maurício Itapary.
“Se você olhar a Rua Portugal em um ângulo ascendente vai ver que todas as portas e janelas são todas iguais. Essa tipologia em tudo é similar à de Lisboa, na área que chamam de Baixa Pombalina, que foi a mais destruída pelo terremoto”, sublinhou o arquiteto Andrès
“Sobretudo porque alguns fatores internacionais, como a Guerra da Independência dos Estados Unidos da América do Norte (1775-1783) e suas sequelas – o bloqueio mercantil da Inglaterra (1814) e a Guerra da Secessão do Sul (1816-1865) obrigaram a prospera indústria têxtil britânica, em plena Revolução industrial, a procurar fontes alternativas ao abastecimento das suas fábricas. Neste sentido, as terras férteis do Maranhão se tornaram as mais cobiçadas pela qualidade das suas plantações e mão-de-obra barata”, contextualizou.
No último quarto do século XIX e começo do século XX, contou Itapary, São Luís dançava conforme outra música, a dos salões da “belle époque” inspirados no Rio de Janeiro, que, por sua vez, ecoava um modelo francês “do ideal de povo e cidade”, o que na verdade era mais uma “maquiagem superficial aplicada às velhas construções”.
Pedra, cal e Carne
“O povo que vive nela, que respira nela, que trabalha na cidade, que dorme e acorda para o comércio nas feiras e mercados, as atividades portuárias, tudo isso se junta e faz uma mistura singular. Não é só pedra e cal, mas o Bumba meu Boi, o tambor de crioula, o negro, o índio. O Centro Histórico de São Luís não é um cenário para turista, você vê a feira da Praia Grande recebendo produtos da baixada todos os dias. Foi tudo isso que a Unesco reconheceu”, disparou em tom emocionado o arquiteto Phelipe Andrès.
São Luís foi a primeira cidade brasileira, por exemplo a ter sua planta “previamente traçada, em uma malha urbana ortogonal, posicionada o sentido dos pontos cardeais e com ruas de igual largura”, apontou o superintendente do Iphan. Ele explicou que o parecer do ICOMOS, diz que “o Centro Histórico de São Luís do Maranhão é um exemplo excepcional de cidade colonial portuguesa adaptada às condições climáticas da América do Sul equatorial e que tem conservado dentro de notáveis proporções o tecido urbano harmoniosamente integrado ao ambiente que o cerca”.
Para Andrès, os problemas, que são muitos, não devem suplantar o orgulho do maranhense. “Tudo isso é nosso e está aqui. Ruínas podem ser revitalizadas, e São Luís é uma referência. O trânsito no centro de Nova York foi tirado há quatro anos, foi noticiado no mundo todo, mas em São Luís ele não existe há 27 anos. Isso é um exemplo de humanização da cidade”, contou.
É um patrimônio sem preço, dizem os especialistas, e que está vivo e servindo ainda hoje para abraçar os problemas sociais da cidade e servir de lar à sua cultura pulsante. Revitalizações como do Centro de Criatividade Oldylo Costa Filho, Casa do Maranhão, Restaurante do Senac, Praça Nauro Machado, os museus de Artes Visuais, Histórico e a Feira da Praia Grande, propiciam benefícios em retorno social impossíveis de calcular.
“Como que você calcula, por exemplo o benefício social que o restaurante do Senac, que durante a obra encontramos mais de 60 carteiras de identidade que assaltantes jogavam lá? Em 1988 desde que foi inaugurado, quantos profissionais de hotelaria se formaram naquela escola, além de ser um restaurante de excelente qualidade para receber o turista. Como se calcula o valo da Fábrica do Rio Anil que se tornou uma escola para mais de quatro mil crianças, tira crianças de rua, forma jovens? Ou aqui, no Morada das Artes, onde os artistas expõe e também moram. Eles tiveram a iniciativa de fazer uma escola de arte?”, questionou em retórica Phelipe Andrès. 
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