Culpadas ou inocentes?

Conheça o caso das formigas que foram a julgamento

Processo foi formado por frades capuchinhos, em São Luís no século XVIII, acusando as formigas do terreno do convento por dano e furto

Reprodução

Um caso no mínimo curioso ocorrido no século XVIII em São Luís movimentou a comunidade eclesiástica do Convento de Santo Antônio. O episódio ocorreu entre os religiosos menores da Província da Piedade e a sociedade das formigas, e tornou-se conhecido por meio do padre Manuel Bernardes, que publicou o livro Nova Floresta (1949, vol I, págs. 326 e seguintes) contando o caso que até hoje gera dúvidas se de fato ocorreu como descrito.

Você imagina que formigas tenham sido condenadas e intimadas a deixar o local em que habitavam? Pois em 1706 foi isso que aconteceu, pelo menos é o que conta o Pe. Manuel Bernardes. O caso foi noticiado pelo jornalista maranhense João Francisco Lisboa, afirmando, entretanto, que o fato era fruto da imaginação do padre Bernardes. Já o professor e jurista José Eulálio Figueiredo de Almeida analisou o processo no livro O processo das formigas (2013). A proposta do autor é que a notícia histórica sobre o fato pitoresco, sem muita importância prática, se torne estudo sério, científico, metodológico, acessível aos leitores de diversas tendências culturais, estudiosos ou não do direito.

Ocorre que, segundo a obra de Pe. Manoel, na Província de Piedade, havia um próspero e observante convento de Frades Menores. Certo dia, a costumeira tranquilidade dos religiosos foi interrompida quando “uma ‘legião’ de formigas começou a estender o seu reino subterrâneo por todo o solo do convento, movendo terras e ampliando galerias”. O meio encontrado para dar fim àquela praga seria exterminando-as, mas então surgiram posicionamentos contra e a favor. Diante da celeuma, um dos frades saiu com esta inusitada solução: “Como entre nós não há consenso, convém que tal assunto seja levado a Juízo. Que seja indicado um advogado de acusação, bem como um de defesa das formigas. E, em nome da Suprema Equidade, sejam ouvidas as partes e dado o veredito”. Foi dada a largada para um processo que começou em 1706.

O julgamento

 

Foi instalado então um Tribunal Eclesiástico. O superior da Casa seria o juiz e outros religiosos nomeados defensores e acusadores das partes. O primeiro a se manifestar foi o advogado de acusação.

– Digníssimo juiz, nós, frades, conformados com a vida mendicante, vivemos de esmolas e também do fruto de nosso trabalho. Estas formigas, animais de espírito totalmente oposto ao do Evangelho, não fazem mais do que roubar.

O que temos a pedir, continuou ele, é que seja decretada a pena capital. Que sejam todas mortas por algum ar pestilento ou afogadas por uma inundação. E que desta forma, para sempre sejam exterminadas de nosso recinto.

Era a hora da defesa: – Digníssimo juiz e ilustres irmãos, em primeiro lugar afirmo que as formigas receberam o benefício da vida de seu Criador, tendo o direito natural de conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor Deus lhes ensinou.

E o defensor listou uma série de argumentos tomando como base a criação e o fato de que os seres já estavam no local antes dos padres chegarem. “Foi Deus que fez os pequenos e os grandes e para cada espécie designou um anjo para as conservar, não cabendo a nós o direito de exterminá-las.”

Por último, concluímos que o acusador defenda a sua casa e farinha pelos meios humanos que souberem, posto que isto lhe é permitido. Porém que elas, sem embargo, têm direito de continuar as suas incursões por onde quiserem.

Após as réplicas e tréplicas, o juiz, enfim, deu o veredicto. As formigas estavam condenadas.

De acordo ainda com o Pe. Manuel, a mandado do juiz, um outro frade foi intimá-las em nome do Supremo Criador para que se retirassem. “Foi aí que um milagre aconteceu. Imediatamente… saíram a toda a pressa, milhares de milhares daqueles minúsculos animais que, formando longas e grossas fileiras, partiram em direção ao campo assinalado, abandonando suas antigas moradas e deixando livres de sua molestíssima presença aqueles Santos Religiosos, que renderam a Deus graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência”, diz o texto. E fim.

Fatos ocorriam na antiguidade

Esse caso chamou e ainda chama a atenção de juristas. O então Ministro Superior Tribunal de Justiça Luiz Vicente Cernicchiaro (falecido em 2010) citou o caso de São Luís em artigo publicado. Na ocasião versa sobre O Dictionnaire de la Penalité, de Saint-Edme, informando que na França, em 1313, um touro brabo soltou-se e chifrou um homem, que não sobreviveu aos ferimentos. Apurada a veracidade da ocorrência, condenaram o animal a ser enforcado.

“Bartolomeu Chassanée e Gaspard Bailly celebrizaram-se pelas defesas que, na qualidade de advogados de seres irracionais, produziram em processos criminais na França, no limiar da Idade Moderna. O primeiro apresentou engenhosa argüição em favor das ratazanas que abundavam na diocese de Autun, entre 1522 e 1530, e devastavam as plantações, causando uma conjuntura de carestia. A habilidade da defesa foi plena de êxito: os ratos foram absolvidos”, diz o artigo.

No Brasil e na América do Sul, segundo o jurista José Eulálio, esse caso foi único. “O livro eu fiz para resgatar o fato histórico a fim de que as gerações passantes e posteriores tomem conhecimento e para saberem que algum dia houve esse ato de insanidade e também para deixar claro que não é possível enxergar na conduta dos seres inanimados ou irracionais crime, porque na antiguidade até um pedaço de pau era processado, era costume o animal ser morto, ser sacrificado para ser enterrado com seu dono. Na própria Bíblia nós vamos encontrar casos de julgamento de animais. Deus no livro dos Gênesis condenou Adão, Eva e a serpente pelo pecado original, então a serpente, pela versão bíblica, foi o primeiro animal a ser condenado, e por Deus. Na antiguidade isso era comum, mas na América do Sul só ocorreu aqui”, afirma.

E se fosse hoje?

O processo foi instaurado com a finalidade de que as formigas fossem expulsas do território e obrigada a sair através de uma sentença condenatória, uma sentença judicial. O certo é que há notícias de que a sentença condenatória saiu e de que as formigas teriam sido intimadas pelo oficial de justiça na boca do formigueiro a saírem. Mas isso tudo é folclore, porque é inimaginável que um ser irracional principalmente do tipo formiga pudesse saber o que estava acontecendo, do tipo: ‘olha eu estou aqui com um mandado de desocupação. Retire-se da terra!’ Isso ai é para aguçar o imaginário popular. Isso aí decorre do poder da criatividade do escritor. Então há quem diga que o padre Manoel Bernardes criou essa história. Mas há quem diga que isso existiu porque existem fragmentos, documentos no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.

Mas isso era possível de ocorrer hoje em dia? Como seria? O jurista Eulálio diz que somente o individuo nascido de uma mulher pode cometer crime. “Eu concluo o livro dizendo que se fosse hoje alguma organização de direito ambiental iria sair em defesa e ainda era capaz dos frades serem condenados a deixar o local. A coragem dos religiosos em abrir esse processo já é um ato de insanidade, pra você ver o momento de escuridão em que o ser humano viva naquela época, mas é porque a igreja no passado sempre se achou autoridade, influenciava nas decisões dos governantes, então eles entenderam que como Deus criou o mundo e os animais, que eles eram representante de Dele na terra e podiam julgar quem eles bem entendessem”.

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