ESPECIAL - SEMANA DA CONCIÊNCIA NEGRA

Jornalismo: ferramenta de transformação

Neste mês da Consciência Negra, O Imparcial conversou com alguns jornalistas maranhenses negros.

Renata Harrison conta que certa vez procurava vaga de repórter televisivo, fez seletivo com 20 pessoas e e era a única negra. (Foto: Arquivo pessoal)

Dificuldade de entrar no mercado

Para os profissionais que entrevistei, entrar no mercado de trabalho já revelou várias situações que, pessoas brancas certamente não enfrentariam, logo de cara. O preconceito velado e o racismo estrutural estão entranhados na sociedade.

Renata Harrison conta que certa vez procurava vaga de repórter televisivo, fez seletivo com 20 pessoas e era a única negra. A vaga foi para um rapaz branco.

“Até hoje é um problema ingressar no mercado de trabalho, pois primeiro dão oportunidades para pessoas brancas. É bem difícil, inclusive tenho amigos que passam todos os dias por essas situações”, relata.

Para Neres Pinto, a discriminação racial ainda existe em quase todas as profissões e argumenta que “as estatísticas estão aí para mostrar como o negro sofre com as desigualdades em todas as camadas sociais”. Segundo ele, o jornalista não está imune ao preconceito, agradece por não ter enfrentado esse tipo de situação dentro do jornalismo, mas em outra profissão, sim.

“Graças a Deus, não tive problemas para ingressar na profissão, mas quando era comerciário, ainda muito jovem, fui discriminado sim. Mesmo sendo capacitado e recomendado por um amigo, acabei não sendo admitido em uma empresa porque o gerente não permitia ali a presença de nenhum negro. Fui avisado com antecedência por um funcionário, não quis acreditar, mas constatei. Lá não havia sequer um mulato, só brancos e louros. Logo, fui descartado por desculpas que não me convenceram nem a quem me indicou. Até porque, sequer me deram chance de ser testado. Foi um choque! Chorei num banco da praça João Lisboa, depois levantei a cabeça e segui em frente. Só sabe como dói uma discriminação quem passou por ela”, garante.

Para Aline Alencar, o histórico do jornalismo no Brasil é conivente na propagação do racismo, diante das pautas que já abordou como anúncios de ex-escravos e por muitos anos apoiando diretamente a eugenia (que defende a inferioridade dos negros em relação aos brancos). 

“As próprias redações de jornalismo são majoritariamente brancas e, quando existem alguns poucos negros no local, ocupam cargos inferiores, com os menores salários (isso quando são pagos) e não tomam a maioria das decisões editoriais. As assessorias aqui funcionam da mesma forma. Para mim não foi tão difícil ingressar, mas nitidamente batalhei duas, até três vezes mais para ser aceita e valorizada. Tanto que, 14 anos depois fui ocupar um cargo de chefia na área, enquanto muitos que conheço mal se formam e já conseguem isso. É um detalhe para ser observado com atenção pelas pessoas, pois quanto mais pessoas negras ocuparem espaços importantes e forem bem remuneradas por isso, contribuímos também com a diminuição do racismo. Pois este não se restringe apenas a xingamentos, mas na inferiorização da pessoa negra de forma intelectual, usando-a como mão de obra barata ou não remunerada, tal como era na escravidão. Em algumas pautas já sofri racismo, sobretudo nas consideradas de elite, na qual a pessoa foi me tratar melhor depois de eu falar que era repórter”, apontou.

Pedro Sobrinho reforça que ser negro em uma sociedade racista como a brasileira, não é fácil.

“Embora sejamos maioria em números, mas minoria no mercado de trabalho e na participação da riqueza econômica do país, por outro lado tenho orgulho de ser negro quando vejo os meus antepassados, que com luta fizeram mudar o curso da história que nos encoraja para enfrentar os desafios do Racismo Estrutural. O jornalismo e uma profissão em que o racismo impera e está inserido dentro e fora das “mídias de massa”, em especial a TV. O racismo velado já foi mais potente na profissão, pois a desigualdade social colocava o negro fora deste ‘status quo’. Hoje, vejo com um outro olhar, o olhar de mudança de comportamento no empoderamento negro alertando os conglomerados de comunicação. Esta nova geração de negros ten mais acesso ao conhecimento científico. Hoje, existem muitos jornalistas negros e as empresas passaram a perceber que a diversidade é um caminho funcional e importante nesta nova ordem mundial e do novo milênio de identidades de cores”.

Emanoel Pascoal relata que o jornalista negro precisa provar duas vezes mais a sua competência para o posto de trabalho, precisa provar permantente que é digno de estar naquele lugar, que é competente o suficiente para estar ali.

“Felizmente tive chefes que acho que nunca compactuaram muito com esse tipo de situação, mas muito provavelmente colegas pudessem ter se questionado: ‘será que ele consegue?’. Então, a gente acaba tendo que provar isso várias vezes. Se for uma mulher negra precisa provar ainda muito mais. Tenho uma colega competentíssima que ouviu de um chefe que ela não era bonita o suficiente para estar no video, que a estética era importante. E hoje ela está na TV, e é uma brilhante profissional. Foi um problema pra mim quando percebo no olhar, ou em alguns comportamentos, de colegas mesmo, o questionamento por estar ali. Mas é muito importante que você, enquanto negro, se imponha com inteligência, com firmeza, acima de tudo mostrando sua competência. Infelizmente é necessário a gente provar e reprovar isso diversas vezes”.

Jailson Mendes disse que nunca passou por uma grande mídia, órgão ou mídia oficial ou tradicional. Outro problema apontado por ele, é o racismo estrutural que dificulta a colocação de negros na imprensa tradicional, sendo um campo majoritariamente ocupado por brancos.

“Eu ainda não consegui ingressar no mercado de trabalho, na imprensa dita ‘tradicional’ (rádio, jornal, TV). Eu tenho o meu blog desde 2009, consigo viver dele, mas é uma dificuldade a gente ingressar em outras mídias. Há muitos profissionais formados sem trabalho, então não há tanta oferta. Sendo negro, isso piora. Não sei se isso é uma questão pensada, mas na prática é o que acontece”.

Jornalismo: ferramenta de transformação

Nossos entrevistados utilizam os saberes, o conhecimento e o fazer jornalístico como agentes de transformação. Só quem sente o preconceito e vive a realidade de ser julgado pela cor da pele, sabe a força e o poder que a comunicação tem de ajudar a moldar a sociedade.

Nada melhor do que ser o agente dessa mudança e contribuir para uma sociedade igualitária utilizando para isso, o próprio jornalismo.

Emanoel Pascoal

“Eu me pergunto sempre se eu contribuo o suficiente. Por alguns anos eu apresentei telejornais em emissoras de TVs distintas aqui de São Luís e e eu achava muito interessante pessoas negras me pararem no supermercado, por exemplo, e dizer ‘nossa, que bom que tem um apresentador negro na televisão. Eu me sinto representado por você. Gosto da forma como você apresenta’. Isso e fantástico e ao mesmo tempo angustiante você ter tão pouca representatividade negra no ar, com apresentadores de telejornais, com repórteres, sendo que o Maranhão é um estado formado majoritariamente por pessoas pretas e pardas, por pessoas que compõe ali pela classificação do IBGE pessoas negras e você não vê essa representatividade. Eu acredito que é possível fazer mais, do local que eu estou. Importante conversar, dialogar com uma geração nova que está chegando de profissionais de comunicação ou não, reforçar a importância de não repetir frases racistas, ditos populares que a gente se acostumou a falar e acha que está tudo bem, levar as coisas pra piada e considerar que está tudo bem, porque não está. Então, esse pertencimento, esse entendimento, são de fundamental importância e a gente aprende gradativamente e eu acho que contribuo pra gente viver num estado racista menos preconceituoso, insistindo no diálogo e sempre que tenho a oportunidade, tento descolonizar essas mentes, entendeu? Esse pensamento eurocêntrico, essas ideias ainda tão retrógradas e tão associadas ao racismo num país que é majoritariamente preto. Então, acho que isso é importante e acho que essa contribuição pode ser feita cotidianamente em todos os ambientes que a gente vive. E eu acho que é importante fazer isso na comunicação”.

Emanoel Pascoal é jornalista com 22 anos de carreira. (Foto: Reprodução/Hadson Chagas)

Renata Harrison

“No meu bairro, faco projetos voltados à dança e tento, toda vez, falar sobre o nosso papel na sociedade, principalmente mulheres negras. Sobre o empoderamento, sobre poder ser livre, de se vestir da maneira que quiser e fazer o que quiser. Contribuo lutando por essas mulheres a cada dia, participando de projetos pretos, que dá oportunidade para outros e outras de nós”.

Neres Pinto

“Acho que nossa contribuição, seja como jornalista ou pessoa comum, começa com a conscientização dos nossos irmãos negros de que devem se qualificar, profissionalmente, de modo que a sua competência seja o escudo contra as discriminações, ao mesmo tempo em que denunciem tais atitudes. Considero o racismo uma insensatez. Afinal, os humanos deveriam perceber que todos os seres vivos têm cores diferentes e nem por isso vivem em clima de guerra. Se todos atentassem para esse detalhe, talvez o número de racistas fosse bem menor em todo o planeta”.

Jailson Mendes

“Eu uso as minhas redes sociais para divulgar ações de negros, para dar visibilidade, mas até nisso a gente encontra dificuldades. Veja só, eu cubro muito a área de conflitos agrários envolvendo a populção indígena de Viana, e até na divulgação dessas informações eu encontro resistência. Eu acho que divulgando ações que permitam uma reflexão acerca da inserção do profissional negro e das minorias, contribuo usando as ferramentas para confrontar as ideias deturpadas da sociedade”.

Aline Alencar

“Minha contribuição, além de existir no meio (pois nossa existência também é ameaçada pelo racismo), é mostrar que conquistar esse espaço também é para aquela pessoa que se parece comigo. É mostrar que, assim como eu, ela também pode e deve ocupar lugares de decisão, de poder, o que ela quiser ser. Além disso, sempre que posso, debato constantemente nossa presença nos locais, não só como mera representatividade liberal, mas exercendo todos direitos de fala e opinião tal qual as pessoas brancas, que sempre são ouvidas e prestigiadas sem terem que lutar por isso como nós. Mas não basta somente eu ou outras pessoas negras contribuírem, pois o racismo e tudo de ruim que isso implica é problema de todos, sobretudo de pessoas brancas que, querendo ou não, se beneficiam do racismo, afinal, não existiria um grupo privilegiado se não houvesse outro excluído. É preciso que as pessoas brancas assumam a responsabilidade nos ouvindo também não somente no dia da consciência negra, mas o ano todo. Nos chamando pra falar não apenas sobre racismo, mas sobre outros assuntos, pois existimos, trabalhamos e estudamos em diversas vertentes como toda pessoa branca também”.

Pedro Sobrinho

“Aprendi que o ‘conhecimento é a tatuagem da alma’, e se você tem ela a seu favor compartilhe. Faco isso com um jornalismo feito de responsabilidade e comprometido com a verdade e ativismo social. E o racismo é um tema que abracei, não apenas por ser negro, mas como um assunto que deve ser abordado com seriedade pela sua complexidade. Falando para pretos e brancos que o racismo, assim como qualquer tipo de preconceito, só atrapalha o processo civilizatório primordial em uma sociedade em que prevaleca a paz, o amor, a solidariedade e justica social”.

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