Opinião

Leia ‘Pós-Ano Velho, Pós-Verdade’, artigo do juiz Aureliano Neto

Os filósofos tentam conceituar a verdade, e os políticos, como não poderiam ser outros, a pós-verdade.

A verdade, convenhamos meus senhores e minhas senhoras, meus jovens e minhas jovens e minhas inocentes crianças, que muitas vezes convivem com a mentira, em si, já é complicadíssima. Imaginem a pós-verdade, considerada a palavra símbolo do falecido ano 2016. Cristo pregava: eu sou o caminho, a verdade e a vida. Pilatos, o governador romano, perguntou-lhe o que é verdade, porém não quis saber da resposta. Preferiu lavar as mãos e condenar a Verdade. Mas a gente lê a Bíblia de cabo a rabo (e eu, como católico refratário, tenha essa mania) e não se encontra a tão decantada pós-verdade. Querem um exemplo de pós-verdade: a eleição do deputado Eduardo Cunha para presidente da Câmara Federal. O nome foi sufragado por uma imensa maioria de parlamentares, sob um discurso sustentado na pós-verdade. Dizia-se um homem de grandes virtudes éticas. Opor-se-ia ao Palácio do Planalto. Comandaria, como o fez (e aí já não é pós-verdade) o impeachment, a ferro e fogo. E afirmava aos quatro cantos da Câmara e de todo o Brasil que não tinha dinheiro depositado em contas secretas, no exterior, em paraísos fiscais. Protestante (e aí também não é pós-verdade, é pura verdade), pagava milionário dízimo para sua igreja, que o acobertava nas suas benevolentes falcatruas. Encontra-se, graças à verdade ou pós-verdade, na cadeia. Mas ainda não abriu o bico pra dizer a verdade ou sua pós-verdade. Sabe-se – não se sabendo se verdade ou pós-verdade – que surrupiou muita grana, auxiliado pela sua dileta mulher, exímia usuária de cartão de crédito, fazendo extravagantes compras em dólar nas suas constantes caminhadas por territórios alienígenas. Assim, por essas e outras, o Rio de Janeiro continua lindo. Com certeza essa é uma verdade. De Eduardo Cunha a Cabral, eis a pós-verdade de uma verdade que tem ainda como companheiro de presepada o nosso eminente e notório Garotinho.

Os filósofos tentam conceituar a verdade, e os políticos, como não poderiam ser outros, a pós-verdade. Ainda não me manifesto sobre a pós-verdade. Deixo para fazê-lo mais adiante. Os filósofos procuram dar sentido diferenciado à concepção do que seja verdade. No sentido moral, afirmam que verdade é entendida como honestidade, sinceridade, autenticidade, transparência. Como consequência desses apanágios, pessoas honestas e sinceras são aquelas que dizem a verdade. Na acepção jurídica, a verdade é aquela que ressai, em face da prova, do que foi apurado no processo, uma vez que o julgamento visa estabelecer a verdade dos fatos. Já na perspectiva epistemológica, a verdade está relacionada ao conheci¬mento da realidade, sendo a representação correta dos fatos. Mas, nessa confusão conceitual, eu gosto mesmo é do que diz Nietzche: a verdade é uma metáfora, ou seja, seria uma mera conveniência, uma convenção humana para facilitar a comunicação e entendimento entre as pessoas. No frigir dos ovos, a verdade seria aquilo que interessa às pessoas. E elas acreditam, por conveniência, naquilo que lhes interessa. Fulano é bom. É bom. E acabou. Fulano é ladrão. Pronto. É ladrão. E está acabado. Não é de estranhar que Joseph Goebbels fazia da mentira repetida uma verdade absoluta. A rotulada pós-verdade. Dizia ele: – Uma mentira repetida mil vezes vira verdade. E o que é a pós-verdade? Ultimamente, tenho lido alguns textos que se referem à pós-verdade. Pós é um prefixo. Tem o sentido de posterior. Por exemplo, posdata-se um cheque para pagar em data posterior. O posfácio é um texto explicativo no final do livro. A pós-verdade é uma verdade posterior à verdade. É uma verdade que não é verdade. É uma verdade que não é bem metida a besta. Muito pelo contrário, ela nos faz de besta. No senti¬do vulgar, é uma mentira que repetida, e de forma conveniente, passa a ter foro de verdade. Mais ou menos assim: eu disse isso, mas não é bem isso que eu disse. Se convém acreditar, acredita-se, se não convém, não se acredita. Não acreditando, é mentira mesmo; acreditando-se, é a pós-verdade. Em Papéis avulsos, um dos livros de contos de Machado de Assis, na parte introdutória, na Advertência, ele define o que seja pós-verdade numa simples e precisa frase: A verdade é essa, sem ser bem essa. Uma bela construção do Bruxo, ao dizer o que seja verdade sem que o seja. Uma verdade que não é verdade, sendo outra a verdade.

Uma certeza ou uma verdade: pós-ano velho, vamos viver as pós-verdades. A crise, de uma hora pra outra, já não é crise; o desemprego já não é tão desemprego; enfim, do dia para noite, surgirão as pós-verdades das mutações, e os militares continuarão no bem-bom, cumulando aposentadoria (intocável) e pensão, enquanto os trabalhadores comuns, os que votam, só se aposentarão quando estiverem reduzidos a míseros cadáveres, ou após os setenta anos de idade. Talvez esta seja uma pós-verdade, mas que muito se assemelha com a verdade epistemológica. Quem conseguir viver, poderá, quem sabe, crer não por conveniência, mas por necessidade de sobreviver no mundo cruel dessas pós-verdades.

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