Os restos mortais de Alice Pleasance Liddell estão sepultados em um cemitério no sudeste da Inglaterra há mais de 80 anos. Uma parte dela, contudo, foi imortalizada ainda na infância, quando serviu de inspiração para a hoje universal e clássica história de ‘Alice no País das Maravilhas’. Lançada há 150 anos, antes de ser escrita a obra foi contada, de improviso, à menina de 10 anos de idade durante passeio de barco. O autor era o romancista, desenhista, fotógrafo, matemático e reverendo Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo pseudônimo Lewis Carroll.
Sempre interessado por ilusionismo, cálculo e jogos diversos, o britânico marcou o livro (infantojuvenil, a princípio) com inúmeros problemas de matemática e lógica. Nas entrelinhas, muitas referências a vicissitudes da época, piadas regionais, trocadilhos, sátiras a amigos e inimigos do autor, além de paródias de poemas infantis do século 19. Por causa de – e apesar de – toda a complexidade, a fábula de Carroll sobre a visita de uma menina a um universo fantástico povoado por criaturas bizarras se tornou célebre e marco inicial do chamado gênero literário nonsense.
O público infantil dificilmente irá perceber além da superfície textual, mas por trás da aventura de Alice estão reflexões sobre a preocupação do ser humano com o tempo, com os rumos da ciência, com os poderes estabelecidos e a organização da sociedade. Isso tudo, vale lembrar, a partir do ponto de vista de alguém vivendo a Era Vitoriana, no Reino Unido de dois séculos atrás. Na definição do tradutor para o português, o historiador Nicolau Sevcenko (falecido no ano passado), a narrativa é “a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos”.
Uma mente doentia
Pedófilo, usuário de drogas, vítima de transtornos mentais e alucinações decorrentes de enxaqueca. Assim como sua magnum opus, Lewis Carroll foi acusado, julgado e condenado ao sabor de cada época subsequente à dele. A mais recorrente polêmica diz respeito à descarada preferência por meninas da faixa etária de Alice Lidell (de até 10 anos), em detrimento de mulheres adultas. Muitos fatos depõem contra o escritor, como o fato de ele ter sistematicamente fotografado crianças nuas (pesquisadores apontam, por outro lado, ser esse um hábito comum naquela época, em uma espécie de culto à inocência infantil).
Outras teorias associam a imagem de Carroll ao uso do fungo ergot, fonte primária da droga alucinógena LSD, além de maconha. Mais uma vez a história é faz o papel de defensora do criador de Alice – a substância psicoativa era prescrita como tratamento médico para diversos fins no século 19 e o haxixe era legalizado. Há, ainda, quem atribui os devaneios da história não à imaginação do romancista, mas a supostas enxaquecas ou crises convulsivas, cujos sintomas incluem alucinações visuais, auditivas e olfativas.
Estudiosos da obra e biografia do escritor alertam para o cuidado necessário ao se fazer diagnósticos históricos, principalmente porque os sintomas, nesse caso, são descritos de maneira leiga e não por um médico. O mesmo vale para as interpretações a partir de comportamentos característicos de outrora, quando os costumes sociais tinham significados distintos. Por via das dúvidas, a melhor opção é tomar conhecimento dos indícios biográficos, mas sem fazer julgamentos definitivos. Assim como Alice Tidell, Lewis Carroll não só é fruto de um tempo e um lugar, como já é falecido há bastante tempo. Sua obra, por outro lado, é imortal.