História

Uma vida entre as sepulturas do Gavião

O local é protegido como patrimônio da humanidade desde 1997.

Foto: Marcos Caldas/O Imparcial

O Cemitério do Gavião, o mais antigo do estado, tem mais de um século de edificação abrigando restos mortais de mais de 17 mil pessoas, em 16 sessões. O local é protegido como patrimônio da humanidade desde 1997.

No dia a dia, no vai-e-vem de pessoas circulando tristes pela partida de um ente querido, ou resolvendo coisas burocráticas que um sepultamento envolve, estão por ali pessoas praticamente invisíveis, mas que desempenham papel importante, cuidando da segurança, limpeza e organização das covas e jazigos do cemitério, e que em geral passam despercebidas.

Além disso, cava sepulturas (realizando posterior recobrimento), transporta caixões dentro do cemitério durante sepultamento e exumação.

O coveiro e outros serventes fazem estas e outras funções. Em meio às milhares de sepulturas eles circulam pintam, arrumam, fazem reparos. E foi lá, no Cemitério do Gavião, que conversamos com o senhor João Pedro Gomes, 65 anos, conhecido como Castelo, um apelido dado a ele quando frequentava a antiga FEBEM (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), para falar da relação dele com o cemitério, um dos patrimônios da cidade de São Luís, que completa neste dia 8, 409 anos.

Morador da região, quando criança Castelo costumava frequentar o cemitério do Gavião para empinar papagaio. Nas outras horas do dia ia para Febem, onde segundo ele, aprendeu vários ofícios na área de pintura e construção civil. Isso o ajudou a fazer algum tipo de serviço no próprio cemitério, já que passava grande parte do dia ali. Ele tinha 12 anos na época. “Eu digo que nasci aqui dentro do cemitério (risos). E daqui não saí mais. Brincava de empinar papagaio aqui. Aí teve um dia que aconteceu um acidente de avião e muita gente morreu. Eu me sentei ali na calçada e fiquei vendo a movimentação dos carros trazendo os corpos, porque o IML (Instituto Médico Legal) funcionava aqui na época. Aí eu me entrosei, fui oferecendo para tomar de conta de sepultura, e assim tô aqui até hoje… é daqui que tiro meu dinheiro”, contou.

Eu digo que nasci aqui dentro do cemitério (risos). E daqui não saí mais. Brincava de empinar papagaio aqui. Aí teve um dia que aconteceu um acidente de avião e muita gente morreu

Do cemitério que tira o sustento da família

Foto: Marcos Caldas/O Imparcial

Castelo não é contratado do Cemitério. Ele presta serviço para pessoas que tem familiares enterrados ali fazendo pequenos reparos nas sepulturas, limpezas, restauros, pinturas, serviços que, segundo ele, pode fazer graças ao tempo que passou na Febem. É do Cemitério que ele sustenta os 6 filhos e 8 netos. “Eu não sou fichado no Cemitério, mas ganho mais do que eles. As pessoas me contratam para recuperar imagem, recuperar letra, restaurar alguma coisa que foi quebrada. Tenho essa responsabilidade porque de vez em quando tem umas pessoas que entram aqui e quebram as coisas, levam alguma coisa das sepulturas para vender”, disse.

Ele está no Cemitério do Gavião todos os dias, chova ou faça sol, das 7h às 18h. Os últimos tempos, por causa da Covid-19, tem sido marcantes. Além de prestar serviços digamos, materiais, a época da pandemia exigiu um pouco mais de trabalhadores como Castelo, exigiu humanidade. Com muitos sepultamentos diários e as restrições de pessoas por causa do vírus, milhares de enterros foram solitários. Familiares e parentes não podiam dar o último adeus à pessoa falecida. Coube aos trabalhadores do cemitério, fazerem o cortejo. “Foi uma coisa muito triste porque chegava defunto não tinha ninguém para carregar. Podia ser rico, pobre, preto, branco, não tinha ninguém para fazer o velório. Foi então que falei com a direção, arrumei uns colegas e começamos a fazer o transporte, o cortejo mesmo. Foi uma coisa que me comoveu muito. Ficamos quase 1 mês fazendo isso, por uma questão de humanidade mesmo. Senhora, isso é muito triste”, lamentou.

Sua profissão? “Faz-tudo”

Foto: Marcos Caldas/O Imparcial

São 53 anos de vida dentro do cemitério e muitos serviços realizados, inclusive o de coveiro (contratado por terceiros). Sua profissão? “Faz-tudo”, responde ele. Dizendo ele, conhece aquilo como ninguém. “Quando tem aluno que vem fazer trabalho eu acompanho, auxilio alguém que precisa de ajuda…, senhora, conheço e já vi muita coisa aqui dentro. Isso aqui é minha vida. Nunca deixei de vir para cá, e quando penso em não vir, fico até doente. E mesmo quando tô doente eu venho. Quem trabalha em cemitério é escravo de defunto”, sentencia.

Já deu para perceber a ligação sentimental que Castelo tem com o Cemitério do Gavião. Inaugurado em 1855, após uma epidemia de varíola na cidade, o Cemitério do Gavião era conhecido como Cemitério de São José da Misericórdia, porque era administrado pela Irmandade da Misericórdia. Depois passou a se chamar Cemitério de São Pantaleão e posteriormente, Cemitério do Gavião, em homenagem ao bairro em que está localizado: Quinta do Gavião.

Dentre as 17 mil sepulturas, pelo menos 2.500 são de vultos históricos, o que revela a importância do local e as inúmeras histórias que já se passaram. “História de cemitério é que nem história de pescador. Só quem tá ali é quem acredita. A gente está aqui conversando e eu vejo alguém passando ali, o vulto. Mas tem gente que não acredita. E se acredita, sai correndo. Na época que a gente brincava aqui, um colega meu pegou uma vara de buscar papagaio e jogou, a vara foi certinho numa sepultura, a gente não sabia. Daí esse menino adoeceu no dia seguinte, foi internado, e a mãe dele, que botava carta foi que viu que tinha acontecido alguma coisa aqui no cemitério. Ela me mandou voltar aonde a gente estava brincando ‘pra mim’ pegar a vara de volta. Quando eu cheguei na sepultura que eu puxei a vara, ele ficou bonzinho no hospital. A vara tinha enterrado na cabeça do defunto. Tem muita história. E isso aqui é coisa séria”, contou.

Medo de trabalhar no Cemitério do Gavião

Medo de estar ali? Medo dos mortos? Ele não tem. Ele tem medo mesmo é de ficar sem receber o dinheiro pelo trabalho que faz. “Os mortos já não fazem mal para ninguém. Agora a pessoa me contratar para fazer o serviço e não pagar? Acontece e muito”, comentou.

Os mortos já não fazem mal para ninguém. Agora a pessoa me contratar para fazer o serviço e não pagar? Acontece e muito

E sobre trabalhar no Cemitério mais antigo da cidade, ele diz: “É o cemitério mais lindo, mais rico e mais tradicional da cidade. Ele já sofreu muito, era do municipal, foi para o Parque do Bom Menino, Rua do Fazendeiro, Rua de São Pantaleão, até chegar aqui que era uma quinta. Quem tem uma sepultura aqui tem que conservar. Isso aqui é histórico e é digno de ponto turístico com muitos personagens importantes que fizeram a história da nossa cidade”, disse.

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