Aos pés da igreja

Você lembra da ‘Beata da Sé’? Conheça a sua história

Saiba o que levou Dona Joana, figura que fez parte durante várias décadas do cenário do Centro Histórico, a pregar todos os dias na porta da Catedral de São Luís

Todos os dias, religiosamente, ela estava lá. Na mureta do pátio da Igreja da Sé, debaixo de um sol de quase meio-dia, chegava aquela senhora. Estava sempre com uma Bíblia e um terço nas mãos. Usava vestes longas, uma sandália, um véu. Parecia uma freira. De aparência cansada, mas muito altiva, falava coisas apressadas, quase sempre inaudíveis, às vezes desconexas ou difíceis de entender.

A porta da igreja era a casa de Dona Joana, ou mais conhecida como a Beata da Sé

Para muitos que a viam por ali, era considerada louca. Esta mesmo que vos escreve, a viu centenas de vezes enquanto passava a pé para ir para a escola, e pensava: “O que faz essa mulher estar aí todos os dias?” Era raro o dia em que ela não estivesse lá.

Mas os anos foram passando, passando, até que ela não mais foi vista por lá. O que teria acontecido com aquela senhora conhecida como a Beata da Sé para uns, ou a Louca da Sé, para outros? A encontramos acamada. Parecia estranho que aquela mulher, que vi a última vez tão ativa, estivesse em uma cama, sem falar, com o olhar perdido. Dona Joana Vieira de Muros, 71 anos, está doente. Teve dois AVCs (Acidente Vascular Cerebral) e hoje não anda, não fala.

Chegamos até ela por meio do ator Uimar Júnior. Ele, que em setembro de 2017 fez a performance de dona Joana, estava à procura dela. Graças às redes sociais, no início deste ano ele conseguiu o contato da filha dela, Gisely. Lá ouviu a história delas e socializou a história para a equipe de O Imparcial.

De contato nas mãos, fomos até elas. Gisely se mostrou disposta a contar a história de sua mãe, até mesmo para que as pessoas que a julgavam antes, entendessem o propósito dela ter pego para si, por tantos anos, o pátio da Igreja da Sé.

Doana Joana já não fala e nem anda, vive acamada sob os cuidados da filha, Gisely, após sofrer dois AVCs. Foto: Honório Moreira

Devo registrar a emoção de Gisely Vieira de Muros ao falar da mãe. O tempo que durou a entrevista durou também a emoção da filha de dona Joana. A voz embargada por vezes era interrompida. Os olhos marejados, as mãos trêmulas denunciavam o sofrimento que estava ali. Um sofrimento que a acompanha desde o dia em que dona Joana se separou do marido. Um sofrimento que só é aplacado quando Gisely lembra do tempo em que a mãe pregava na Igreja da Sé.

“Ah, quando eu passo por ali, que olho para a igreja, me passa um filme. Lembro-me daquela época. Não lembro de muita coisa, mas era um tempo que estávamos juntos. Eu e meu irmão ficávamos ali brincando enquanto ela pregava. É como se visse ela ainda ali”, disse.

Gisely pouco estudou. Tanto ela quanto o irmão, Jorge Gesiel, nasceram no Rio de Janeiro e vieram para São Luís quando tinham 4 e 2 anos, respectivamente. Acompanhando a mãe em tudo, não fizeram o ensino regular.

Dona Joana nasceu em Anajatuba, em 1946. Veio para São Luís com 14 anos para trabalhar em casa de família. Depois foi para Belém com uma amiga e de lá para o Rio de Janeiro. Lá conheceu Gesiel José de Muros. Casaram, tiveram dois filhos, mas sofreu com a rejeição, perseguição e preconceito da família dele, já que ele era branco e se casou com uma negra.

Era 1978 Gesiel Jorge faleceu. Ela ainda estava de resguardo do filho mais novo. Dois anos depois, nada mais tendo a fazer no Rio de Janeiro, voltou para São Luís. Mas sem lugar para morar, foram para a porta da igreja da Sé.
Em depoimento a Uimar Junior, Gisely contou que dona Joana foi presa e levada para o Hospital Nina Rodrigues, mas não adiantava, pois soltavam e ela voltava. Foi proibida pelos padres da época de ficar pregando na calçada da porta da igreja, então, aos poucos, conseguiu pregar no pátio.

Ela e os dois filhos ficavam perambulando de um lado para outro. O locutor Raimundo Coutinho a ajudou a encontrar a casa de uma amiga de Joana, Ana. Lá na igreja da Sé ficaram por quase quatro anos, até a primeira vez em que Joana foi internada no Hospital Nina Rodrigues.

“Como meu pai morreu, ela ainda de resguardo, ficou com depressão pós-parto, teve transtorno. Mas nunca se tratou. Nunca teve acompanhamento. Começaram os problemas aí. Ela ficou viúva com 31 anos. Quando ela era internada, a gente ficava na casa de um e outro. Da segunda vez que ela foi internada, a gente ficou na casa de um parente, o taxista Romário. Eu fiquei lá uns 2 anos, mas eu queria ir para onde minha mãe. Então, ficamos na casa de uma irmã dela que morava no Anjo da Guarda. Eu estava com seis anos. Foi lá que eu me criei. Depois de muito tempo, foi que ela conseguiu uns papéis do falecimento do meu pai, aí passou a receber pensão dele”, conta.

Gisely, filha de Joana, se dedica a cuidar integralmente da mãe. Foto: Honório Moreira

Um lar para a beata

Em 1989, saíram do Anjo da Guarda e foram para uma casa na Vila Palmeira. Em 1990, foram para o lugar que estão até hoje. Uma casa de um cômodo apenas onde vivem as duas.
Gisely conta que em casa dona Joana era outra pessoa. “Era como se fosse o trabalho dela. Quando chegava em casa, tomava de conta da gente, sempre gostou de cozinhar, cuidava da casa…”, contou.
Mas as vidas delas eram cercadas pelas preocupações constantes com o irmão, que, segundo Gisely, está desaparecido. Dependente químico, era um problema para as duas porque ele causava confusão todas as vezes que estava drogado. Era violento. Com tanta preocupação, dona Joana teve o primeiro AVC, em 1998, e ficou com sequelas na perna. Ainda assim ela continuava indo para a Igreja da Sé.
Com 23 anos, uns amigos o levaram para São Paulo, tentaram ajudar, mas, por causa da dependência em drogas, foi preso e voltou para São Luís. Entre sumiços e prisões do irmão, Gisely conta que desde 2006 elas não tem notícias dele. Com isso, dona Joana teve o segundo AVC, em outubro de 2009. Foi a última vez que ela foi à igreja da Sé, pois ficou com sequelas graves.

“Em resumo, eu soube que a mamãe tinha um carinho, um sentimento mais especial com o senhor Raimundo Coutinho. Ela tinha um amor platônico e transferiu muita coisa pra ele, ao mesmo tempo em que achava que meu pai ia voltar para a gente. Para ela, ele nunca morreu. Achava que ele vinha nos buscar para colocar a gente para estudar. Então, isso tudo mexeu com a cabeça dela. Ela nunca se conformou com a morte do meu pai. Daí vieram todos esses problemas”, contou Gisely.

Apelo

Com uma alimentação específica e necessitando de transporte, pois dona Joana não anda, ela quer ajuda governamental para cadastrar a mãe no projeto do governo estadual Travessia, porque ela precisa de deslocamento especial. “Eu não sei como fazer isso, eles exigem umas documentações e a gente precisa dessa ajuda. E também tem a alimentação especial que ela precisa. Qualquer ajuda é bem-vinda”, pede Gisely.

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