PANDEMIA

Em vulnerabilidade, ciganos temem efeitos da pandemia em comunidades

Famílias sofrem despejo e veem contaminação por covid-19 aumentar

Fábio Rodrigues Pozzebom/Arquivo/Agência Brasil

A histórica situação de vulnerabilidade das comunidades ciganas no Brasil tem cobrado seu preço durante a pandemia do novo coronavírus. Além dos casos de expulsões de famílias acampadas, ciganos têm relatado falta de assistência social e sanitária por parte do poder público e aumento dos casos da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Não há um balanço oficial, mas levantamento do Instituto Cigano no Brasil (ICB), entidade com sede em Caucaia (CE), aponta que, até agora, um total 13 ciganos, em pelo menos oito estados, morreram após contrair a infecção. Esse número, no entanto, pode estar subestimado.

Mortes por covid-19 entre os povos ciganos – Divulgação/ICB

“A gente tinha o temor de que o primeiro cigano adquirisse o vírus. Os ciganos, mesmo aqueles que não moram em acampamentos, geralmente ficam todos juntos, moram sempre no mesmo bairro, em casas próximas. Dificilmente você vê um cigano morando isoladamente e isso faz com que o vírus, uma vez sendo contraído por uma pessoa, rapidamente se dissemine”, afirma Jucelho Dantas da Cruz, cigano da etnia Calon e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. 

Em Camaçari, região metropolitana de Salvador, um surto da covid-19 em um bairro com grande concentração de ciganos mobilizou uma reação coletiva após a suspeita de que cerca de 40 pessoas haviam sido contaminadas, no final de maio. Depois que a gente denunciou publicamente e cobramos ação da prefeitura, eles vieram ao bairro fazer os testes. Só da minha família, foram dez contaminados. Desses, três têm comorbidades. Foram duas semanas de muita tensão. Três de meus irmãos foram internados, além da esposa de um deles. Todos se recuperaram, voltaram para casa e ficaram reclusos. Os outros que tiveram teste positivo ficaram assintomáticos”, relata Jucelho.

Homenagem

Presidente do Instituto Cigano do Brasil, Rogério Ribeiro, também da etnia Calon, criou uma página nas redes sociais para registrar as mortes de ciganos vítimas da covid-19. “O objetivo é tirar da invisibilidade cidadãos que têm família, história e deixaram um legado após a morte”, explica. 

Entre as vítimas da covid-19 está o músico Antonio Ferreira dos Santos, conhecido como Cigano Barroso, de 62 anos, que morreu na cidade Sobral (CE), no dia 2 de junho, após passar uma semana internado na Santa Casa da cidade. 

Na Bahia, o comerciante Lomanto Marques, de 57 anos, morreu no dia 12 de junho, depois de ficar 21 dias no hospital Português, na capital Salvador. Ele era da comunidade cigana de Camaçari.

Ciganos jovens, fora do grupo de risco etário para a covid-19, também estão entre os mortos pela doença, segundo levantamento do ICB. É o caso de Velodia Joce Blado, de 36 anos, cigano da etnia Rom, que faleceu no início do mês passado, em Guarulhos (SP). No Espírito Santo, a estudante cigana Dayana Soares Galvão, de 24 anos, também morreu em decorrência de infecção pelo novo coronavírus. 

Além da distribuição de cestas básicas, os ciganos têm cobrado apoio para aquisição de material de higiene. “Temos pedido a distribuição de produtos para fazer a desinfecção. Existem muitas famílias ciganas pobres, sem condições de comprar produtos de higiene”, afirma Ribeiro. 

Ações

Na Bahia, onde três ciganos já morreram e estimativas indicam que centenas já foram contaminadas, o governo estadual prometeu a distribuição de máscaras para comunidades tradicionais. “Atualmente, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) tem trabalhado na distribuição de 150 mil máscaras de tecido, por meio de entidades representativas dos segmentos, ação que alcançará mais de 600 comunidades tradicionais e das periferias”, informou a pasta, em nota enviada à reportagem.

Em âmbito nacional, as políticas de inclusão social de povos e comunidades tradicionais são articuladas pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Procurada pela Agência Brasil, a pasta informou que, no caso específico dos ciganos, “tem buscado promover ações de apoio à população vulnerável diante do enfrentamento ao novo coronavírus, por meio do fortalecimento de instituições sem fins lucrativos que atuem com trabalho voluntário na sociedade”. Sobre a distribuição de cestas básicas, a pasta disse que a prioridade tem sido dada para áreas indígenas e territórios quilombolas, mas que parcerias com governos estaduais têm sidos realizadas para atender aos ciganos. “As cestas básicas distribuídas foram destinadas aos povos indígenas e comunidades quilombolas. Entretanto, iniciativas do programa Pátria Voluntária, dos entes estaduais e dos entes municipais, focaram, também, no atendimento aos ciganos”, acrescentou.

Ciganofobia: preconceito e expulsões

Episódios de racismo e preconceito fazem parte do cotidiano das comunidades ciganas há várias décadas, mas o contexto da pandemia agravou esse cenário, principalmente para as famílias que ainda mantêm as características de itinerância, transitando entre diferentes acampamentos de tempos em tempos. 

Ao menos três casos de expulsão de famílias de acampamentos foram registrados em municípios do interior do país. Em abril, cerca de 100 famílias de ciganos foram proibidas de permanecer na cidade de Dois Vizinhos (PR), após intervenção de agentes da prefeitura e da Polícia Militar. Eles estavam prestes a acampar em uma área tradicional de rancho cigano, quando foram interceptados e obrigados a deixar os limites do município.

“É o que a gente chama de ciganofobia. Algumas pessoas começaram a associar os ciganos como vetor do novo coronavírus”, afirma Igor Shimura, diretor da Associação Social de Apoio Integral aos Ciganos (Asaic). 

Após ser expulso de Dois Vizinhos, o grupo de ciganos, que incluía grande quantidade de idosos e crianças, se deslocou para Guarapuava (PR), outra cidade do interior paranaense, onde também foram impedidos de permanecer, em um primeiro momento. Foi preciso uma negociação com o advogado das famílias para que eles conseguissem se instalar nas imediações da cidade, por meio de um acordo com a polícia militar.  

“Antes da pandemia, já era difícil para os ciganos, principalmente os itinerantes, quando chegam numa cidade. São mal vistos, tem aquelas lendas preconceituosas que se criam sobre o nosso povo”, afirma Antonio Alves Pereira, da etnia Calon, integrante do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná.

Procurada pela Agência Brasil, a prefeitura de Dois Vizinhos informou, por meio de nota, que a chegada dos ciganos na cidade promoveu aglomeração, contrariando as normas de distanciamento social em locais públicos. “Esclarecemos que a fiscalização do município recebeu denúncia de moradores das imediações do Estádio Municipal dando conta que ciganos estavam se instalando no estacionamento do mesmo. No local havia inúmeras pessoas em aglomeração. Diante da denúncia os fiscais se deslocaram até o referido endereço e solicitaram que os integrantes do grupo providenciassem a retirada do acampamento do local, uma vez que o grupo havia se deslocado de Cascavel (PR) para Dois Vizinhos (PR). Em Cascavel, as informações eram que o município já estava enfrentando a transmissão comunitária da covid-19”, diz a nota.

Meu rancho, minha casa

Outro caso de expulsão de ciganos em meio à pandemia ocorreu em Paim Filho, interior do Rio Grande do Sul. Após eles acamparem em uma área de ocupação tradicional do grupo, no final de maio, a prefeitura da cidade entrou com uma ação de reintegração de posse na Justiça, para que eles fossem obrigados a se retirarem do local. O principal argumento utilizado pela administração municipal foi justamente a ideia de evitar aglomerações. 

”Quando os ciganos estabelecem acampamentos, eles permanecem mais reclusos no local, ainda mais no contexto da pandemia. Além disso, os locais onde eles acampam representa a casa deles, o seu território tradicional de ocupação. Eles têm esse sentimento, muitos nasceram nesses acampamentos”, afirma Marcelo Almeida, advogado que defende comunidades ciganas na Região Sul do país. 

No caso de Paim Filho, a Justiça não concedeu a liminar de reintegração de posse e garantiu a permanência dos ciganos no local, mas eles acabaram, dias depois, decidindo deixar a cidade.

Para Maria Jane Soares, integrante do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, falta preparo das prefeituras para lidar com as especificidades culturais dos povos ciganos. “Em nossos caminhos rotativos, a gente tem que ter um canto de parar, repousar, que são os ranchos, mas temos essa dificuldade porque as prefeituras não querem trabalhar com a inclusão dos ciganos, garantindo reconhecimento e assistência nesses locais. Quando a prefeitura trabalha com os povos tradicionais, o racismo é reduzido. Quando as prefeituras viram as costas, o racismo fica mais forte”, aponta.

Segundo Antonio Alves Pereira, cigano do Paraná, os grupos itinerantes no estado têm adotado outras estratégias, durante a pandemia, para evitarem a perseguição em municípios do estado. “Muitos estão separando grupos de 15 a 20 famílias em grupos menores, por medo de serem expulsos. Nossa orientação tem sido para que eles evitem as cidades maiores e permaneçam isolados nos acampamentos.”

O governo federal informou que monitora as tentativas de expulsão de ciganos instalados em acampamentos e que tem tentado dialogar com as prefeituras, por meio do Ministério da Saúde. “Recebemos as informações de tentativas de expulsões em Camaçari (Bahia), Piripiri (Piauí) e Paim Filho (Rio Grande do Sul). Nas três cidades, a Secretaria Nacional de Promoção de Políticas de Igualdade Racial entrou em contato com os representantes dos grupos ou associações representativas para compreender as demandas e realizar os encaminhamentos. Todas eram relacionadas a questões da covid-19. Desta maneira, a secretaria encaminhou as demandas para o Ministério da Saúde realizar um acompanhamento direto com o município, com exceção da cidade de Paim Filho, pois o grupo já havia deixado a cidade por conta própria, mesmo havendo uma decisão judicial a favor da continuação deles na cidade”, informou a SNPIR em nota enviada à reportagem.

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