COVID-19

“Mal consigo beber água”: profissional da saúde narra rotina da guerra contra coronavírus

Fisioterapeuta intensivista do maior hospital de trauma da América Latina descreve bastidores da batalha contra a COVID-19 e alerta: casos da doença em jovens se multiplicam a cada dia

Reprodução

“Vocês vão me entubar?”. A pergunta parte de uma mulher em torno dos 40 anos, sem histórico de doenças crônicas, encaminhada ao Hospital João XXIII, no bairro Santa Efigênia, Região Leste de Belo Horizonte, com suspeita de infecção pelo novo coronavírus. Continua depois da publicidade

Cerca de 48 horas após a internação, a batalha estava perdida. O que começou com um quadro gripal simples evoluiu rapidamente para a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), condição que matou a paciente. 

O relato é de Nara Nicomedes, fisioterapeuta intensivista que, por 48 horas, comandou o funcionamento dos pulmões da vítima por meio de um respirador artificial. Na primeira linha de combate à COVID-19 na capital mineira, ela diz que casos como esses têm se tornado cada vez mais comuns em sua rotina.

“Infelizmente, eles se multiplicam. E o que assusta é justamente o perfil dos pacientes. Não são só idosos. Muitos são jovens, estão na faixa dos 30 aos 50 anos. Ou seja: gente que faz parte da população economicamente ativa

alerta a profissional. 

No front da pandemia, o cotidiano é pesado e carregado de minúcias. A jornada de Nara tem início às 19h, com um rigoroso protocolo de paramentação – nome dado à troca de roupa dos profissionais de saúde. A entrada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do João XXIII exige o uso de pelo menos 13 equipamentos de proteção individual, entre luvas, toucas, jalecos, sapatilhas descartáveis, macacões e óculos. Antes de vestir cada um dos itens, é preciso lavar as mãos. O ritual todo, conta a fisioterapeuta, leva ao menos 30 minutos. 

Maratona de tensão: fisioterapeuta intensivista, Nara Nicomedes passa pelo menos 12 horas na UTI do Hospital João XXIII(foto: Arquivo pessoal)
Maratona de tensão: fisioterapeuta intensivista, Nara Nicomedes passa pelo menos 12 horas na UTI do Hospital João XXIII(foto: Arquivo pessoal)

A desparamentação é ainda mais demorada. Levo 50 minutos para tirar toda indumentária pois, além de todas as lavagens de mãos, ao fim do processo, eu preciso tomar um banho num chuveiro específico, separado só para a nossa higienização. E enquanto estou paramentada, fico ao menos 5 horas sem nem sequer beber água ou ir ao banheiro, pois não dá para ficar tirando e vestindo as peças de trabalho, nem correr o risco de contaminá-las. Fora que os internados exigem a minha atenção absoluta, eu mal respiro

explica Nara. 

Os plantões da especialista são de 12 horas. Cada fisioterapeuta intensivista como ela é responsável por dez pacientes. No João XXIII, onde há 30 leitos de UTI mobilizados para o surto de coronavírus, há seis desses profissionais contratados. “Com a pandemia, a demanda pelo nosso trabalho cresceu muito em BH e no Brasil todo. Frequentemente, recebemos propostas para ganhar até triplo do salário. Diria que é um momento inédito nessa profissão”, conta a mineira. 

Amor em tempos de virulência

Nas trincheiras da guerra contra a COVID-19, além do vírus, a tensão e a grande carga emocional com que lidam os profissionais de saúde também são inimigos. Por trás dos uniformes, jalecos e máscaras, lembra a fisioterapeuta há pessoas que sentem medo, preocupação e tristeza.

Claro que a gente tem medo. Medo de morrer. Medo de se contaminar ou de passar o vírus para as pessoas com quem convivemos. Isso fora o clima do hospital, que é pesado. Imagine que estamos diante de pacientes que sequer podem ser acompanhados pela família, receber visitas, ou mesmos ser velados pelos parentes, em caso de óbito. Durante algum tempo, somos tudo o que eles têm. As únicas pessoas que chegam perto deles. A responsabilidade é muito grande

Ainda de acordo com a fisioterapeuta, a  pandemia, não raro, transforma vida pessoal das equipes. A rotina dos casamentos, por exemplo, pode ficar um tanto mais árida. 

Imagine que tanto eu, quanto meu marido trabalhamos em UTIs, somos intensivistas. Antes, chegávamos em casa e ainda tínhamos disposição para uma boa conversa. Brinco que mudou tudo depois do surto. Ao fim do expediente, estamos esgotados, mal nos damos bom dia e boa noite

Segundo Nara, o João XXII disponibiliza psicólogos para o suporte emocional dos profissionais.  “Frequentemente, eles nos abordam e perguntam se está tudo bem. É um conforto”, diz. 

‘Fiquem em casa!’

No dia 6 d e abril, o Estado de Minas flagrou o afrouxamento da quarentena em Belo Horizonte, ao registrar várias pessoas frequentando normalmente a orla da Lagoa da Pampulha para praticar esportes, fazer passeios e caminhadas.  Nessa quinta-feira (9), em Brasília, o próprio presidente Jair Bolsonaro, que chegou a classificar a COVID-19 de “gripezinha”, fez uma visita a uma padaria da Asa Norte, onde tirou fotos e cumprimentou apoiadores.

A falta de compreensão sobre a relevância do isolamento social preocupa a fisioterapeuta intensivista, que faz um apelo: “Fiquem em casa! Estamos falando de uma doença muito virulenta, ou seja, com um poder de infecção muito grande. No Brasil, ela tem vitimado muitas pessoas jovens, entre 30 e 50 anos. Se a preocupação é a questão econômica, então pensem: o que vai ser da economia do país sem a sua força produtiva?”

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