ARTIGO
Pequena droga, desgraça grande
Li nos jornais, não faz muito: 90% das notas de real, ora em circulação no Brasil, trazem vestígios de cocaína. Acurados exames laboratoriais, nas cédulas do nosso rico dinheirinho, vieram a comprovar cientificamente aquilo que na prática já teria sido possível intuir: que boa parte da economia nacional, circulando de maneira informal, é influenciada senão […]
Li nos jornais, não faz muito: 90% das notas de real, ora em circulação no Brasil, trazem vestígios de cocaína. Acurados exames laboratoriais, nas cédulas do nosso rico dinheirinho, vieram a comprovar cientificamente aquilo que na prática já teria sido possível intuir: que boa parte da economia nacional, circulando de maneira informal, é influenciada senão dominada pelo narcotráfico. Estarrecedora ou simplesmente curiosa a notícia, o certo é que deve ser verdadeira como a revelar este fato: o mercado das drogas deve ser visto hoje no Brasil como um autêntico “instituto”. Ou seja, instituição estabelecida com suas regras e formas de atuação, com geral predomínio na sociedade, impondo-se com seus valores e linhas de força. Clandestino e ilegal é bem verdade, mas nem por isso desprezível.
Dessa verdade sociológica não há como fugir. E deve ser enfrentada com realismo e coragem. Pelo menos no campo das ideias, arma única de que dispõe uma perdida e solitária crônica de jornal.
Veja-se, por exemplo, o que está ocorrendo no Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da (in)constitucionalidade de certo artigo da lei de entorpecentes. Cuida-se de saber se o possuidor de pequena quantidade de maconha, que dela deve ser usuário e não trafi cante, esteja possível de ser criminalizado. Relembre-se que em termos de “cannabis” o STF já operou um precedente que ficou célebre quando liberou a “marcha da maconha” em obséquio, segundo disse, à liberdade da manifestação de expressão e de livre reunião. Depois dessa supremada, o tráfico ficou exultante porque o consumo da “liberdade” teria sido elevado ao paroxismo , como de fato foi.
Desta vez, já sinalizou um digno ministro votante que acolherá a tese da inconstitucionalidade porque, segundo pensa, não deve o Estado suprimir a liberdade do cidadão, invadindo- lhe a privacidade, com ofensa a sua dignidade de ser humano. Coisas que tais…
O discurso chega a ser tocante em sua beleza de hino ao princípio libertário. Democrático, iluminista, politicamente correto, conceda-se, com os diabos! Não há como dele discordar em seu lineamento principiológico.
Sucede que aqui entra um “data venia” ao excelso STF para dizer-lhe que poderá haver um erro de enfoque na questão. Aponto esse erro. Ei-lo: o cidadão, usuário, possuidor – e não traficante – da pequena quantidade da erva, não existe apenas como certa abstração no meio social a que está integrado. Ele age, reage e interage no complexo social, ativa ou passivamente. Mas nunca isolado e neutralizado em redoma protetora como se fosse um arquétipo ideal, algo asséptico, próprio de ser estudado em laboratório. Trocando em miúdos: aquela pequena quantidade da droga, que é possuída por um membro da sociedade, certamente que não a obteve por esforço próprio, plantando-a no seu quintal ou apanhando-a do céu qual o maná bíblico. Não e não.
A pequena e inocente quantidade da dita cuja por certo que o deleitante a comprou de um traficante que, a sua vez, vende quantidades maiores do produto. Consequência: assim agindo no mercado, o nosso ingênuo e impoluto consumidor não apenas está moralmente satisfazendo a uma necessidade, sua muito íntima, viciosa ou não, contra a qual o Estado não pode interferir; ao contrário, ao participar do mercado, concorrendo para uma atividade criminosa, aí sua atitude deixa de ser moralmente defensável e contra ela pode interferir o Estado porque ofensiva à sociedade.
Essa visão libertária do consumo, além do mais, vista de outro ângulo que não o do mercado, deve também ser regulada pelo Estado. Isso na medida em que pretende resguardar a saúde do indivíduo, sabido que, por cientificamente comprovado, o uso da droga lhe é prejudicial, sem falar nos reflexos danosos no âmbito familiar, na delinquência marginal e nos maiores gastos na rede pública hospitalar para tratar e recuperar viciados.
Dito por outras palavras: a lei de entorpecentes não foi feita apenas para contemplar a figura insulada do pequeno consumidor, senão que para regular sua atividade na relação social, já aqui com mais precisão falando, no contexto do instituto do mercado.
Esse o erro de enfoque que se teme venha a ocorrer no STF: a pretexto de proteger o viciado, vitima-se a sociedade.
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