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Justiça quer garantir que presos em flagrante sejam julgados em até 48h

O projeto Audiência de Custódia, desenvolvido e aplicado no Sistema Prisional do Maranhão, tem como objetivo garantir que o preso em flagrante seja apresentado a um juiz em até 48h

Era exato 27 de maio de 2014, o Sistema Prisional do Maranhão vivia o pior momento da história, em meio a uma crise sem precedentes. Em uma sala do Fórum de São Luís, a corregedora da Justiça, desembargadora Nelma Sarney, coordenava uma reunião com juízes e promotores, que contou com a presença do coordenador do Grupo de Monitoramento Carcerário, desembargador Fróz Sobrinho. Dessa reunião, resultou um dos mais importantes projetos desenvolvidos nos últimos anos e que hoje é replicado para todo Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça. Trata-se do projeto Audiência de Custódia, com base no artigo 7º do Pacto de São José da Costa Rica.
Mas o que diz esse tal pacto, documento do qual o Brasil é signatário? De acordo com o seu artigo 7º, está estabelecido que “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
Implantado no Maranhão em outubro de 2014, após amplos diálogos com os órgãos do Sistema de Justiça, a Corregedoria iniciou de forma experimental, na Central de Inquéritos de São Luís, a execução das referidas audiências. Em dezembro, editou o Provimento 24, que instituiu a medida no âmbito do Judiciário maranhense, iniciativa até então inédita no Brasil. Na prática, o objetivo é garantir que o preso em flagrante seja apresentado a um juiz em até 48h. Com isso, pretende-se realizar uma triagem, verificando-se as circunstâncias da prisão, evitando-se excessos e assegurando o cumprimento da legislação penal, ao mesmo tempo em que contribui para uma “qualificação” dos ingressos no sistema carcerário.
Em balanço apresentado no final do último mês de maio, a Central de Inquéritos apresentou um resultado de quase 500 audiências de custódia realizadas, das quais 202 houve decisão pela liberdade provisória e em 180 foi decretada a prisão preventiva e o devido encaminhamento do preso a unidade prisional. Todas as pessoas presas levadas a audiência passaram pelos mesmos procedimentos: foram ouvidas pelo juiz, houve manifestação do Ministério Público e da Defensoria Pública ou advogado, dependendo do caso. Após todas as exposições o juiz avalia a situação e profere sua decisão.
Foto: Divulgação.


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Nelma Sarney: 'Na Audiência de Custódia, é avaliada apenas a legalidade da prisão e suas circunstâncias'

Questionada sobre a possível crítica de que o Judiciário estaria devolvendo bandidos às ruas, a desembargadora Nelma Sarney afirmou que não se trata de garantir direito de bandidos, mas sim de assegurar o direito que tem todo cidadão, que, salvo exceções, só pode ser preso após processo transitado em julgado. “Temos um quadro com juízes extremamente qualificados e comprometidos com sua função social. Naturalmente, em cada caso deverá ser analisado o contexto da prisão em flagrante, o tipo de delito cometido e o histórico da pessoa detida. Com base nesses elementos e em consonância com a lei, é que o juiz decidirá sobre a decretação da prisão preventiva ou a concessão da liberdade provisória, geralmente concedida com o estabelecimento de critérios técnicos previstos na legislação penal”.

A corregedora também lembrou que há uma análise técnica em cada caso e que não é possível fazer pré-julgamentos. Cabe destacar que o Estado Brasileiro é concebido pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, a todos é assegurado a presunção de inocência e a manutenção do processo legal e da ampla defesa. “Na audiência de custódia não se julga se a pessoa é culpada ou inocente. É avaliada apenas a legalidade da prisão e suas circunstâncias, verificando os critérios para decretação da prisão preventiva – caso em que a pessoa segue para uma unidade prisional – ou para a concessão de liberdade provisória ou outra medida cautelar”, explicou.
O coordenador da Unidade de Monitoramento do Sistema Carcerário do Maranhão, desembargador Froz Sobrinho, também minimiza a possibilidade de colocar em liberdade pessoas perigosas. Para ele só há ganho para a sociedade na implantação do projeto. “Quando o magistrado verifica a prisão sob o aspecto da legalidade, verificando a necessidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, por meio do uso de medidas cautelares, implanta-se uma nova rotina que permitirá maior controle da entrada de presos dentro do sistema. Fica encarcerado quem realmente deva ficar e solto quem tem possibilidade de responder em liberdade”, destaca.
Em todo caso é importante esclarecer que, em caso de liberdade, não se pode confundir com impunidade. Não se trata de perdão. A pessoa que atende aos critérios legais estabelecidos no Código de Processo Penal (artigos 310, 319 e 321) e têm a sua soltura concedida, continua a responder normalmente pelo delito praticado, assim como a pessoa que tem sua prisão preventiva decretada. a diferença é que pelo conjunto de elementos, uma aguarda em liberdade e outra aguarda encarcerada.
Caso Prático
Em janeiro deste ano a Central de Inquéritos realizou, em apenas um dia, 35 audiências de custódia. Em cada uma delas foi ouvida uma pessoa que participava de uma festa supostamente organizada por uma facção criminosa. Na oportunidade, todas as pessoas foram liberadas e responderam ao processo em liberdade e, ao final dos trabalhos, cerca de dois meses após as audiências, o Ministério Público ofereceu denúncia somente contra quatro dos acusados. Esse caso poderia acarretar em afronta aos direitos e à dignidade da pessoa humana, caso todas as pessoas fossem mantidas presas sem um critério técnico e legal. O exemplo reforça que o projeto está no caminho certo.
Na época da audiência, ao ser questionado sobre a prisão do filho, o senhor Raimundo Oliveira avaliou que a detenção poderia ter sido arbitrária, mas que confiava no resultado da audiência. “Tenho certeza de que meu filho vai ser liberado após essa audiência. Ele não tem nada a ver com o crime, estava lá na festa porque foi convidado por um amigo, mas sei que agora vai ser tudo esclarecido”. O filho do senhor Raimundo foi um dos liberados.
“A conversão do flagrante em prisão preventiva vai depender do caso, pois o que é levado em conta é a gravidade concreta do fato criminoso, consubstanciado na reiteração criminosa e o modo de agir na prática do delito, as quais denunciam a periculosidade do agente e faz justificar a necessidade de prisão cautelar com forma de garantir a ordem pública, ordem econômica, instrução criminal e aplicação da lei penal”, explica o Antonio Luiz, juiz coordenadora da Central de Inquéritos.
Impacto Econômico
Apesar de não se tratar de uma questão apenas de financeira, não se pode descartar o impacto positivo que ocorre na economia para os cofres públicos. Considerando o valor aproximado de R$ 2.000,00 (dois mil reais) por detento no Maranhão e as 202 pessoas para as quais foi decretada a liberdade provisória, já é possível calcular uma economia mensal de pelo menos R$ 404.000,00 (quatrocentos e quatro mil reais), valor que seria gasto com a manutenção dessas pessoas nas unidades prisionais.
A economia também é claramente percebida nos gastos com logística para e tramitação inicial do processo. Antes do projeto, o preso ia diretamente para uma unidade prisional e somente em seguida o advogado acionava a Justiça com pedido de liberdade. Os autos eram encaminhados para a promotoria titular do caso e, após manifestação, retornava ao juiz que decidia e encaminhava à Central de Mandados para que um oficial pudesse cumprir a decisão. Todo esse caminho percorrido para realização de atos simples, que demandava tempo e envolvia recursos humanos e materiais, está reduzido a apenas uma audiência.
Referência
No mês de janeiro, membros da Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos) Maria Laura Canineu e Cesar Muñoz; e da Rede de Justiça Criminal, Hugo Leonardo, Amanda Hildebrand e Ana Luiza Bandeira, que é coordenadora do projeto-piloto de audiência de custódia em São Paulo, conheceram a experiência maranhense com a finalidade de replicar a prática.
No Período da visita, Maria Canineu afirmou: “o problema de superlotação resulta na falência do sistema é nacional, mas esperamos que o Maranhão possa avançar e que essas experiências possam reverberar para outros estados”. Essa expectativa foi comprovada aproximadamente dois meses após a visita, com a publicação pela Human Rights de um relatório que retratou a experiência maranhense como uma solução para o desgastado sistema carcerário brasileiro, confirmando a iniciativa como uma medida a ser adotada em todo País.
Conforme indicada pela organização de defesa dos direitos humanos, o Maranhão virou referência para outras unidades da federação, que fizeram do Estado um roteiro prioritário para o desenvolvimento de projetos similares. São Paulo foi o segundo estado a implantar o projeto e, para isso, contou com apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Justiça. Hoje, a prática é está sendo consolidada em todo Brasil, mediante termo de cooperação firmado com os estados.
Conforme explicou o desembargador Froz Sobrinho, o Maranhão vem aperfeiçoando a medida desde sua implantação. Ele afirmou que o Judiciário maranhense trabalha paralelamente para garantir a continuidade do projeto. O desembargador citou, como exemplo, a implantação das audiências de custódia durante o plantão criminal. “O Tribunal de Justiça e Corregedoria Geral de Justiça vêm estruturando a Central de Inquérito para que os juízes plantonistas possam também fazer a audiência, considerando que a maior número de prisões ocorrem nos finais de semana e no período da noite. Com essa vinculação, o plantão passa a ter estrutura física e administrativa para auxiliar a realização das audiências de custódia fora do horário forense”.
Consolidação
O reconhecimento nacional do projeto de audiência de custódia veio na última segunda-feira (22), quando o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, reconheceu o pioneirismo do Maranhão, ao assinar o termo de cooperação com o Estado. Essa parceria, de acordo com Nelma Sarney, consolida e coroa todo empenho de um trabalho integrado iniciado em 2014. Ela informou que além da cooperação, a Corregedoria deu impulso ao projeto com por meio de ato normativo, que vincula o plantão criminal à Central de Inquéritos. Lewandowski acompanhou uma audiência realizada no Tribunal de Justiça.
O Provimento 22/2015, publicado em 19 de junho, na prática aperfeiçoa o projeto de audiência de custódia. Com as novas regras, o juiz plantonista nos casos necessários, deverá realizar a audiência de custódia com a finalidade de avaliar critérios para, só então, decretar a prisão preventiva. Essa vinculação dá impulso ao projeto, pois elimina empecilhos que antes eram justificados, e com razão, pelos juízes plantonistas. Com a alteração, o plantão passa a contar com toda estrutura física e com os servidores qualificados da Central de Inquéritos.
Nelma Sarney explicou que foi necessário vincular o plantão à Central para contemplar todos os casos de prisão da região metropolitana. Isso porque a maior parte das prisões acontece no período noturno e aos fins de semana e feriados, período em que é a competência recai sobre o plantão. Somente em 2015 foram efetuadas cerca de 1.200 prisões em flagrante durante os plantões criminais. Para o juiz Antonio Luiz, a mudança com a medida será evidenciada no aspecto quantitativo. “Vai aumentar o número de audiências de custódia, porque o juiz de plantão terá que realizar o ato durante o plantão ou designar a mesma para o horário forense”, afirmou.
Apesar de todos os avanços, Nelma Sarney disse que o processo de aperfeiçoamento deve ser continuo e passa pela manutenção permanente do diálogo entre as instituições que integram o Sistema de Justiça.
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