MAIORIDADE PENAL

A maioria tem sempre razão?

“Com a crise atual do nosso modelo de Democracia Representativa, é necessário ouvir cada vez mais a população e recriar mecanismos de consulta direta à população. Precisamos de efetivos mecanismos de democracia participativa”. O discurso acima, colocado de modo descontextualizado, serviria, sem dúvidas, de fundamento a diversos elogios, da direita à esquerda. Serve atualmente também […]

“Com a crise atual do nosso modelo de Democracia Representativa, é necessário ouvir cada vez mais a população e recriar mecanismos de consulta direta à população. Precisamos de efetivos mecanismos de democracia participativa”.
O discurso acima, colocado de modo descontextualizado, serviria, sem dúvidas, de fundamento a diversos elogios, da direita à esquerda. Serve atualmente também ao Congresso Nacional, já que nosso Parlamento pretende reduzir a maioridade penal e como fundamento legitimador da medida ventilou a ideia de ouvir a população, através de um plebiscito ou um referendo. A ideia da consulta popular habitou também o discurso de muitos defensores da reforma política.
O problema da representatividade e da democracia em modelos de sociedades complexas como as que temos atualmente não éde tão simples solução. Pesquisa CNI/Ibope do ano de 2011 aponta que aproximadamente 79% dos brasileiros acreditam que penas mais rigorosas podem reduzir a criminalidade, a despeito das estatísticas mostrarem que nunca se prendeu tanto no país e nunca a criminalidade esteve tão alta. Entre os entrevistados, 46% defendem a pena de morte e 69% a prisão perpétua. Já86% dos entrevistados aceitam a redução da maioridade penal. A pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizada em 2014 apontou que 58,5% dos entrevistados concordam com a ideia de que se as mulheres “soubessem como se comportar”, haveria menos estupros.
Então o que fazer com a democracia direta quando éo próprio povo quem apoia a pena de morte ou tolera estupros contra mulheres de minissaia? O que fazer quando o próprio povo, esse poder soberano, esmaga “democraticamente”uma minoria marginalizada?
Nesse caso, temos de admitir, ainda que reconhecidas todas suas insuficiências, as virtudes de um modelo de democracia representativa. Atualmente, a arena política estáinundada por fatores e decisões técnicas, que o povo não domina, de modo a dificultar a participação de cada pessoa nos processos decisórios. Sociedades complexas, problemas e soluções igualmente complexos.
Assim, uma decisão sobre a reforma política ou a redução da maioridade penal,éeminentemente técnica, pressupondo que quem decida conheça e entenda as consequências de sua decisão para toda a sociedade brasileira. Não se quer aqui que tais reformas sejam delegadas a uma comissão de “ilustres”, de “técnicos”.
Ao revés, o que se estáa afirmar éque o melhor campo para aliar conhecimento técnico e decisão política ainda éo Poder Legislativo, o qual, caso viole em seu processo decisório algum direito fundamental, terásua decisão submetida ao controle do Judiciário. Obviamente, tudo com a influência do povo, mas não diretamente decidido por ele. Nem sempre as decisões majoritárias são materialmente justas, e talvez resida aía contradição trazida pela modernidade ao próprio regime democrático.
Ora, como se iria esclarecer suficientemente a população numa campanha de aproximadamente 30 dias sobre a redução da maioridade penal? Como explicar a doutrina da proteção integral e o enorme retrocesso que a redução representa no atual estágio de defesa, promoção e garantia dos direitos da criança e do adolescente no Brasil? Como explicar que se trata ou não de cláusula pétrea que não pode ser objeto de emenda constitucional? Será se a sociedade está esclarecida que, diferentemente do que divulgam jornais, revistas e programas policiais, a idade de responsabilidade penal no Brasil não se encontra em desequilíbrio se comparada à maioria dos países do mundo?
Numa democracia representativa, o povo não decide diretamente os assuntos da comunidade, mas elege os seus representantes para que, filtrada a opinião da maioria, decidam de acordo com um julgamento mais ponderado, informado e menos apaixonado. Em diversos casos, a complexidade do assunto exige maioria qualificada não sópara se garantir uma decisão justa, mas também para a proteção das minorias que não tem a expressão política das vozes majoritárias. Além disso, esses mesmos representantes decidem pautados em bases de direitos fundamentais que a Constituição que legitima sua representatividade impõe obedecer.
São esses direitos humanos, direitos fundamentais que todo ser humano étitular, que impedem a vontade da maioria esmagar os direitos de uma minoria igualmente humana. E uma democracia que considera o bem comum acima dos interesses particulares deve ter como parâmetro de referência os direitos humanos, sob pena de se instalar um regime totalitário disfarçado de democracia.Assim funciona a Democracia Moderna da qual o Brasil faz parte: a representatividade, delegada a outro cidadão, é uma das regras para que se consiga fazer democracia em sociedades muito numerosas. Apostar no medo, na insegurança e no caos para fazer valer nossas vontades políticas éalgo que já deveria ter sido esquecido como mecanismo de luta política, além de ser uma estratégia populista que fere a própria democracia. Admitir tal instrumento de guerra é retroceder à Idade das Sombras, se bem que um tempo em as mulheres que usam minissaias precisam ter receio de serem estupradas talvez mereça tal denominação.
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