O crescimento da violência doméstica durante quarentena
O reflexo disso está nos números apresentados pela 2ª Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na capital
Estima-se que no Brasil, a cada uma hora, 503 mulheres são vítimas de violência doméstica (DataFolha/FBSP, 2017), ocupando a 5º colocação no ranking mundial de mortes de mulheres, que tem como principais agressores marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado ou ex-namorado. O palco principal dessa tragédia é a casa.
No ano passado, o Maranhão registrou 52 casos de feminicídio, de acordo com dados do Departamento de Feminicídio da Polícia Civil. Em 2018, foram 46 e em 2017, 51 casos. De acordo com uma análise criminológica da Polícia Civil, dos casos ocorridos em 2018, foi constatado que 57% dos crimes aconteceram dentro da casa da vítima, 84% foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros (o chamado feminicídio íntimo) e 50% dos crimes foram cometidos por arma branca.
Com a crise sanitária causada pelo novo coronavírus, vieram as medidas para contenção do contágio, dentre elas o isolamento social. O período de confinamento intensificou a convivência familiar, e com ela, surgiu a instabilidade emocional, a insegurança. Somado a isso, mulheres que já passam por um ciclo de violência com seus companheiros, maridos, namorados, se viram “presas” a eles. “Casa, portanto, para muitas mulheres não é sinônimo de proteção, mas de violência. O Brasil encontra-se em isolamento social, a população está em quarentena, presas em suas casas, tornam-se presas dos seus conhecidos. Neste momento, o lar se constitui enquanto paradoxo de existência para algumas, se na rua pode morrer de corona, em casa morre por existir”, opina a Doutoranda em Ciências Sociais (UFMA) e Professora do Centro Universitário Estácio São Luís, Maynara Costa de Oliveira Silva.
Neste momento, o lar se constitui enquanto paradoxo de existência para algumas, se na rua pode morrer de corona, em casa morre por existir
O reflexo disso está nos números apresentados pela 2ª Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na capital. De 18 de março a 17 de abril deste ano, foram distribuídas 197 medidas protetivas de urgência (MPU) somente em São Luís. Nos meses de março e abril do ano passado foram expedidas 329 e 314 medidas, respectivamente.
Segundo a titular da Vara, Juíza Lúcia Helena Barros Helluy da Silva, a média de MPUs mensal é 300. “Esses dados levam a gente a uma reflexão. Não está acontecendo a violência ou elas não estão conseguindo acessar a Rede? Se expedimos em média 300 medidas por mês, como se explica essa redução brusca? Acredita-se em vários fatores: o fato de não haver um Boletim de Ocorrência Eletrônico disponível; o fato delas, por estarem em casa cuidando dos os filhos (que não estão indo para a escola) também, ser um empecilho para elas conseguirem sair para fazer a denúncia; o medo de pegar a doença; e ainda a questão do transporte, quando muitas são dependentes financeiramente”, disse a juíza.
De acordo com a juíza, é hora de os órgãos de proteção ampliarem a forma de acesso às denúncias. “Se as mulheres não denunciarem, mas o acesso está lá. Se o trabalho da Rede é anterior ao crime, tem que haver uma forma de saber como chegar antes ao problema”, opina.
De acordo com a Delegacia Estadual da Mulher, em 2019, nos meses de março e abril foram registrados 515 e 547 boletins de ocorrência, respectivamente. No mês de março deste ano foram 472. O auto de prisão em flagrante que foi de 40 no mês de março do ano passado, este ano passou para 34.
A delegada Karla Simone reforça que pode estar havendo subnotificação. “Acredito que por todos estarmos de certa forma psicologicamente abalados, os casos de violência doméstica podem ter aumentado. Acredito também que essas mulheres tenham receio de se expor no deslocamento, em virtude da pandemia”, disse.
No estado, recentemente, foi enviada ao Governo do Estado e à Secretaria de Segurança Pública, uma indicação sobre esse possível cenário em nosso Estado. “A mídia internacional já vinha comunicando às autoridades de países como a China e os EUA sobre esse crescimento de casos de violência doméstica contra as mulheres nesse período de isolamento social. Diante dessa situação, nós não podemos deixar de assistir essa situação de maneira eficaz. Por isso, enviamos uma indicação ao Governo do Estado, e demais órgãos competentes, uma indicação como forma de alertar o poder público desse possível cenário no Maranhão”, explica o autor da indicação, o deputado estadual Dr. Yglésio.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou esta semana que criou um grupo de trabalho para elaborar sugestões de medidas emergenciais para prevenir a violência doméstica. Segundo o órgão, a medida foi tomada após a confirmação do aumento dos casos registrados contra a mulher durante o isolamento social, em razão da pandemia do novo coronavírus (covid-19).
O grupo vai elaborar um diagnóstico da situação e propor o aperfeiçoamento da legislação que trata do tema. Entre as recomendações, o CNJ destacou a a adoção de medidas que garantam maior rapidez e prioridade no atendimento das vítimas de violência doméstica e familiar no Poder Judiciário.
Ajuda dos vizinhos importa
A violência doméstica é um amargo efeito colateral da quarentena, imposta com o objetivo de frear a pandemia do novo coronavírus. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP), nas duas primeiras semanas de março do ano passado, houve 1.157 chamadas sobre violência doméstica no país. Neste ano, no mesmo período, ouve uma queda desse número para 652 casos no mesmo período. “Apesar de mostrar um cenário com menos denúncias, esse dado, dentro do atual cenário, pode expressar a dificuldade que as mulheres estão tendo para realizar o contato com órgãos competentes”, explica o FBSP.
Em contrapartida, de acordo com um estudo do Fórum, em parceria com a empresa de pesquisas Decode Pulse, os depoimentos sobre brigas de casais na internet aumentaram 431% desde o início do isolamento social. As instituições analisaram 52.315 menções no Twitter, das quais 5.583 indicavam violência doméstica contra mulheres. “Isso demonstra que os vizinhos estão se importando mais, mas eles também precisam denunciar. Com a pandemia e o isolamento social, eles ficaram mais atentos ao que ocorre ao redor. E eles precisam ajudar também, precisam denunciar. Estamos vendo essa rede de solidariedade e toda ajuda importa para que a mulher saia do ciclo de violência, mulher que às vezes, não tem como fazer a denúncia. Uma vez feita a denúncia, ela tem todo o acolhimento, se quiser tem a medida protetiva, e a partir daí é acompanhada pela Patrulha Maria da Penha”, disse a juíza Lúcia Helena Barros Helluy da Silva.
Para a Diretora da Casa da Mulher Brasileira, Susan Lucena, a questão da violência não está no fato do isolamento em si, mas qualquer mulher que se sinta violada deve procurar os canais de atendimento como o disque denúncia pelo número (98) 3223-5800, ou ainda os canais convencionais 180 ou 190. “A gente tem visto muita sororidade, pessoas que se ajudam, que oferecem sua ajuda para o outro, e assim também deve ser no caso de violência doméstica. Qualquer pessoa pode denunciar. Porque o que está acontecendo é que a vítima está enclausurada, então é importante que os vizinhos reportem o que esteja acontecendo. A gente precisa fortalecer a questão da denúncia”, disse Susan Lucena.
Qualquer pessoa pode denunciar. Porque o que está acontecendo é que a vítima está enclausurada, então é importante que os vizinhos reportem o que esteja acontecendo
A diretora da Casa da Mulher destacou ainda que com a situação atual, de isolamento, de não poder falar ao telefone para que o agressor não ouça, as denúncias aumentaram nas redes sociais. “Muita mulher pedindo socorro, mais do que antes. E a gente já encaminha. Recebemos uma que o marido tinha rasgado todas as roupas delas, mandou foto, então a gente orienta para registrar o boletim de ocorrência e passa a acompanhar o caso. Já chegou mensagem de mulher de madrugada pedindo ajuda. Então imagina, essa mulher sofrendo violência e sem poder sair de casa?”, questionou Susan Lucena.
O momento é de solidariedade para a realização de uma rede de proteção a essas mulheres que, em vez de se preocuparem apenas em defender-se de um vírus desconhecido e invisível, precisam proteger-se também do seu maior inimigo: o agressor que visivelmente convive a seu lado.
Violência afeta filhos
Na semana passada duas mulheres foram assassinadas a golpes de faca. Uma morta pelo companheiro em Presidente Dutra e a outra, morta pelo ex-companheiro, em Palmeirândia, no interior do estado.
Talia Elias foi morta pelo companheiro na frente das duas filhas. Uma delas ouviu que o pai ia matar a mãe e a viu caída no chão. O suspeito foi preso e encaminhado para a delegacia de Presidente Dutra.
No outro caso, ainda mais grave, Nayze Martins Chagas, de 21 anos foi morta pelo ex-companheiro junto com os filhos de dois e quatro anos.
Segundo a polícia, o crime foi cometido por Adeilson de Jesus Martins Barros, de 30 anos, a golpes de faca, no povoado de Vila Nova (Palmeirândia), que ainda incendiou a residência com as vítimas dentro. Ele foi morto logo em seguida durante um confronto com policiais.
Para a juíza Lúcia Helena, essa é mais uma consequência ruim da situação de pandemia. “Agora o agressor não vitima só a mulher, mas os filhos que também estão em casa. A violência doméstica se modificou afetando as crianças também”, lamentou.
Outro tipo de violência a ser observado é a questão da violência contra a criança e adolescentes que acontecem em geral praticados pelos pais, padrastos, parentes, dentro da casa com pessoas do próprio convívio.
Quem chama a atenção é Susan Lucena, diretora da Casa da Mulher Brasileira. “A gente tem alertado muito para que as pessoas fiquem atentos. Teve um caso recente que a mãe pegou o padrasto mantendo relação sexual com a filha, a filha contou tudo, ela foi levada à delegacia e foram identificadas lesões antigas, então ela já vinha sendo estuprada há bastante tempo”.