Mobilidade Urbana

O desafio de pedalar em São Luís

Dividindo espaço na malha viária com coletivos, automóveis e pedestres, os ciclistas enfrentam obstáculos (literalmente) diários para exercer o direito de ir e vir

Jornalista Valquíria Santana (Foto: Reprodução)

Era para ser mais um domingo como tantos outros na vida da jornalista Valquíria Santana, Ela saiu de casa de bicicleta para encontrar as amigas do pedal, e assim, pedalarem pelas ruas e vias de São Luís. Mas como eu disse no início, era para ser mais um domingo comum. Não foi. Valquíria foi atropelada por uma senhora, no Vinhais, que dirigia um automóvel. E graças aos equipamentos de segurança pessoal que usava, não teve ferimentos mais graves, pois caiu, teve vários ferimentos pelo corpo, bateu a cabeça no asfalto, e ficou ferida além de no corpo, na alma. Os ferimentos físicos estão se curando. Os emocionais podem demorar um pouco mais.

“A cidade não tem estrutura para nós e os governantes também não nos enxergam. Ciclovias? Para que? para tirar o espaço do poste de iluminação pública, do estacionamento de carros, das lojas que usam o espaço público para colocarem seus produtos, do local de jogar lixo… E depois desse acidente que me deixou ferimentos físicos, abalo psicológico e também prejuízos financeiros? Íntegro o @pedaldasminasslz que é um coletivo de mulheres que pedalam, que lutam por políticas públicas, que defendem o direito legal de ocupar as ruas com as bicicletas. Será que é demais pedir que não nos matem? Senhores governantes, parlamentares, legisladores, órgãos fiscalizadores…Não nos matem mais”, foi o apelo da jornalista que está emocionalmente abalada, mas esperar ficar bem para retornar às ruas.

A jornalista contou que a causadora do acidente não se mobilizou para ajudar. Só saiu do carro após os policiais, chamados pela própria vítima, chegarem. Na hora foi registrada uma ocorrência e no dia seguinte ela se dirigiu à Delegacia de Trânsito para registrar um Boletim de Ocorrência. E relatou a burocracia, e a subnotificação de registros.

“Pense em uma dificuldade. Por isso que as pessoas desistem. É algo que acontece todos os dias. Somos invisíveis no trânsito. E há muita subnotificação. Esta semana mesmo aconteceu com outras quatro meninas, algo semelhante ao que aconteceu comigo, mas elas não registraram na delegacia, deixaram por isso mesmo. Mas eu não quero deixar por isso mesmo”, disse ela.

Acidentes deixaram 4 mortos em 2022

De acordo com o Departamento Estadual de Trânsito do Maranhão (Detran-MA), no ano de 2022, foram registrados 34 sinistros de trânsito envolvendo ciclistas em São Luís, sendo 4 vítimas fatais. O quantitativo referente ao ano de 2023 ainda está em fase de consolidação de dados.

“O Detran-MA destaca que promove, permanentemente, por meio do setor de Educação para o Trânsito, ações de conscientização e fiscalização em todo o Maranhão voltadas para todos os envolvidos no trânsito, entre eles, o ciclista. Entre janeiro de 2022 e abril de 2023 foram realizadas 324 ações, como palestras em escolas e empresas e abordagens educativas, com objetivo de reduzir os números de sinistros de trânsito”, informou o órgão.

O Departamento ressalta, ainda, que vem realizando a coleta de dados estatísticos e elaboração de estudos sobre acidentes de trânsito e suas causas, conforme atribuição definida no Art. 22 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

“Não pedalo só por lazer”

Uma vida sedentária e transtornos de ansiedade ficaram para trás. Há 2 anos Valquíria pedala não só por atividade física, mas porque a bicicleta proporciona bem-estar físico e mental. Em 2022, ela vendeu o carro que tinha e optou pela bicicleta para ir ao trabalho e fazer outras atividades do dia a dia com pequenos percursos (como ir ao supermercado, mercado, comércios mais próximos).

“Não tenho a bike só como atividade de lazer. Para mim é meio de transporte e de atividade física”, disse.

Mas e agora, e o medo para retornar às ruas? Depois que resolver a quesstão da bicicleta, que ficou muito danificada, espera voltar;

“Fiquei emocionalmente abalada, claro. Mas nem procuro pensar nisso agora, para não focar nesse medo. Como estou com algumas partes do corpo machucado e sentindo dores ainda, não poderei pedalar nos próximos dias ou semanas. Mas não quero deixar de pedalar. Terei o apoio do meu grupo de pedal (Pedal das Minas) para retornar aos poucos. Recomeçando em grupo e depois retomando minha autonomia de pedalar sozinha como faço para me deslocar ao trabalho diariamente”, disse.

O Código de Trânsito determina que o motorista deve manter 1,5m de distância do ciclista. A infração é média e a penalidade é de multa e pontos na carteira (Artigo 201). Segundo Valquíria, era um domingo de manhã e estavam apenas ela e a condutora na via.

Fortalecimento das pedaladas urbanas

Os perigos nas vias são diários, já que pedestres, ciclistas e condutores de veículos dividem o mesmo espaço em muitos pontos da cidade. Em São Luís, é cada vez mais crescente o uso de bicicletas não só por lazer e saúde, mas como transporte mesmo.

A Cris Quaresma, produtora audiovisual, participa do Coletivo Pedal das Minas como Bike Anja Articuladora Voluntária. O Coletivo surgiu há 6 anos com o objetivo de apoiar e fortalecer mulheres que ja tinham interesse em usar a bicicleta como meio de transporte e lazer, mas tinham medo.

“Nosso trabalho como voluntária no coletivo tem como objetivo fortalecer as e pedaladas urbanas nas vias afim de que mais mulheres ocupem as ruas, que é de direito dos ciclistas, bem como buscar autonomia por meio do uso da bicicleta”, disse a produtora.

As Anjas, como Cris, são apoiadoras nas pedaladas ensinando e orientando corretamente sobre sinalização e educação no trânsito para ciclistas. O Coletivo, formado só por mulheres, tem mais de 250 participantes. Pergunto se já passaram por constrangimento.

“Todos os dias. Xingamentos, desrespeito, motorista de ônibus e carro ‘tirando fino’ e buzinando. Motoristas buzinam o tempo todo, mesmo a gente estando na via correta e sinalizadas. Em pedal de mulher o que mais acontece é desrespeito dos motoristas”, disse Cris, que começou a pedalar na pandemia (2020) e usa a bike como transporte para ir ao trabalho todos os dias. “Eu e a maioria das articuladoras usamos a bicicleta como meio de transporte urbano. Inclusive, temos parceria com a ONG Bike Anjo (nacional) onde existe uma campanha de incentivo chamado ‘De Bike ao Trabalho'”, contou Cris.

O Pedal das Minas é, segundo ela, o único grupo de cicloativistas de São Luís que se engaja na causa da mobilidade urbana sustentável da cidade.

“Inclusive, temos um grupo de trabalho dentro de incidências políticas que estava super presente durante todo o processo de criação do Plano Diretor, que não contempla. Afinal, a sociedade civil praticamente foi ignorada na criação do Plano apesar todo apelo que fizemos desde 2018”, lamentou.

Pressionada a sair da frente

A advogada Caroline Caetano carrega o medo de andar de bike, desde que foi vítima de um condutor que a empurrou com o carro para que ela saísse da frente. Foi em outubro do ano passado, próximo à Ceasa, no bairro Cohafuma. Ela estava com um grupo de ciclistas do Pedal das Minas fazendo uma atividade diária do grupo. Nas proximidades da Ceasa, o grupo que se dirigindo para entrar à esquerda, sentido Rangedor, ouviu um motorista buzinar insistentemente, não respeitando a distância mínima de 1,5m. O grupo esperava o sinal abrir para prosseguir, quando isso aconteceu, segundo conta Caroline, o motorista além de buzinar atrás do grupo, começou a encostar nela, que era a última da fila. Encostou no pneu traseiro da bike e empurrou a ciclista, pressionando-a a sair da frente. Com isso, ela desce da bicicleta, ele bate na lateral e se evade do local. Caroline, sem perceber o que havia acontecido, ainda tentou seguir com a bike até perceber que o pneu estava empenado.

“A gente interrompeu o pedal, entramos em contato com o Ciops para registrar a orcorrência, mas eles não se dispuseram a ajudar. O acidente aconteceu debaixo de uma câmera de monitoramento, mas a orientação foi de que a gente se dirigisse ao plantão central. Nisso, foi passando uma viatura da PM. Eu pedi socorro a eles, eles também pediram à Ciops a placa do veículo, mas não conseguiram. Ficamos por mais de uma hora, pedi socorro a uma pessoa para levar a bicicleta, fui na delegacia pra registrar a ocorrência e no dia seguinte fui na Delegacia de Trânsito”, contou Caroline.

Uma vez na delegacia, disseram que o boletim precisava ser refeito. A partir daí, segundo Caroline, começou um calvário.

“Por cerca de 2 meses fiquei indo até a delegacia saber sobre o processo, se havia sido aberto, mas nada foi feito. Minha família com medo de alguma represália por parte do condutor, me aconselhou a largar de mão. E eu larguei. No final das contas, eu mesma arquei com os reparos da bicicleta e agora, infelizmente, não tenho mais tanta segurança de pedalar. Algumas vezes fico muito nervosa quando tem muito trânsito. Um temor se instalou”, contou.

Nós solicitamos à Delegacia de Trânsito informações sobre boletins de ocorrência de acidentes com ciclistas, e ainda sobre processos abertos e/ou em andamentos, mas não tivemos retorno.

Quarta pior capital do Brasil em mobilidade ativa

Saúde, lazer, economia, comodidade, diversos são os motivos e benefícios que levam as pessoas a optar por bicicletas. Para que essa escolha seja feita, há um fator fundamental em jogo: a segurança durante a corrida, dada principalmente por ciclovias e ciclofaixas. Um levantamento do site mobilize.org, apontou as capitais brasileiras que mais priorizam o ciclista e a qualidade de sua rota, favorecendo a construção de uma cidade melhor através da mobilidade ativa.

Manaus, Macapá e São Luís, de acordo com o levantamento feito em 2017, são as três capitais que figuram no topo de baixo do ranking quando o assunto é a implantação de ciclovias. Naquela época, São Luís tinha o pior índice de malha cicloviária por habitante: são 60.659 pessoas para cada quilômetro. Com o crescimento da cidade, e ausência de mais ciclovias, dá para entender sobre o que estamos falando.

“Nunca vi ciclovias aqui, apenas ciclofaixas, ou faixa compartilhada (como a calçada ridícula da Av. São Luís Rei de França), e que não atendem a população, pois além de estarem muito longe da padronização ideal, são aleatórias e não foram criadas com base em algum plano de mobilidade. Ou seja, começam do nada e chegam em lugar algum. Não atendem a população vulnerável que usa a bicicleta como meio de transporte”.

De acordo com a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), São Luís possui apenas 36km de ciclofaixas, para uma cidade com 1.115.932 habitantes, o que resulta em 3,23km para cada 100 mil habitantes. A capital maranhense está no ranking como a quarta pior capital do Brasil em mobilidade ativa.

Qual a diferença entre ciclovias e ciclofaixas ?

As ciclovias determinam espaços segregados para o fluxo de bicicletas. Ao adotar uma separação física como blocos de concreto, grades ou, até mesmo, as distanciando da pista de automóveis. Sendo assim, elas isolam os ciclistas, os protegendo, e são utilizadas principalmente em locais de tráfego mais intenso.

As ciclofaixas determinam um espaço para o ciclista na pista de rolamento a partir de faixas pintadas no chão, que podem incluir, ao invés de uma separação física, sinalizações no asfalto como “olho de gato” ou “tartarugas” para limitar o espaço de uso das bicicletas.

Maio Amarelo

A campanha do Maio Amarelo é uma ação coordenada entre o poder público e a sociedade civil para colocar em pauta o tema segurança nas mais diferentes esferas. A proposta é chamar a atenção da sociedade para o alto índice de mortes e feridos no trânsito em todo o mundo, bem como orientar sobre ações de segurança e prevenção.

Neste ano o tema é “No trânsito escolha a vida”, e em todo o Brasil, diversas atividades serão desenvolvidas, dentre elas, ações em faixas de pedestre (com faixas, painéis e informações a condutores e pedestres); blitz educativas (orientações sobre direção defensiva, atitudes corretas para com o veículo, passageiros, vias, velocidade, distância e entre condutores).

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