O autista pelos olhos de quem cuida
Duas mães contam dos desafios, mudanças e alegrias de conviver com uma criança autista; entenda também o que você precisa saber sobre o assunto.
Numa definição meramente científica, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) se manifesta por dificuldades na comunicação e nas interações sociais, de se adaptar a mudanças na rotina, com a presença de comportamentos repetitivos e baixo contato visual.
No Dia Mundial de Conscientização do Autismo, é possível caminhar noutra direção e ver mais que conceitos: ver o autista pelos olhos de quem cuida. É o caso de Juliana e Vanessa, mães de crianças autistas que arregaçaram as mangas para dar a seus filhos uma vida feliz e completa.
Os primeiros sinais
Foi durante as consultas de rotina de Michelle, 7 anos, na Unidade Materno Infantil do Hospital Universitário de São Luís (MA), que uma médica notou os primeiros atrasos na fala, na locomoção e no contato visual.
Após uma série de avaliações com especialistas, veio o diagnóstico positivo. “Não foi fácil”, conta Vanessa Moura, mãe da Michelle.
“Eu ainda tinha esperança de ser apenas um atraso, chorei muito, não entendia o que era o autismo e imaginei várias coisas: como eu vou cuidar de uma criança especial? Como vai ser a minha vida? E a vida da Michelle? Passou um filme na minha cabeça”, relata Vanessa.
Como o TEA é considerado um transtorno de neurodesenvolvimento, a criança tem dificuldade para se comunicar socialmente e ocorrem comportamentos repetitivos e estereotipados, como o balançar das mãos de certa maneira, ou do corpo para frente e para trás.
Para Juliana Cabral, mãe de Sergio Júnior, 10 anos, a notícia da nova realidade que se apresentava trouxe uma experiência semelhante ao processo do luto. “A gente tem uma dificuldade de reconhecer como pais que nosso filho tem alguma coisa”, lembra.
Apesar do baque inicial, Juliana também buscou conhecer as características do autismo e levou o filho a um especialista.
“[Sergio] não tinha interação nem conseguia brincar com outras crianças, apenas um pouco com a irmã. Ele também tinha estereotipias vocais, fazia muitos sons com a boca, andava na ponta dos pés e não gostava de ir à escola”, relata a psicopedagoga.
Lidando com uma criança autista
“Eu não tinha ideia do que era o autismo”, recorda Vanessa. Depois de receber orientações sobre o TEA, a autônoma descobriu o que muita gente ainda ignora: uma pessoa autista pode viver de forma saudável, desde estudar e passar no vestibular, a casar e ter filhos.
Morando apenas com a Michelle, Vanessa precisou deixar o trabalho para cuidar integralmente da filha. Quatro anos após o diagnóstico, a mãe dedicada conta que hoje lida melhor com tudo.
“Graças a Deus ela já aprendeu muita coisa, fala ‘super’ bem, anda melhor… ainda tem muita dificuldade de aprendizagem e com as atividades da escola, mas no comportamento é muito tranquila, não é agressiva”.
Vanessa Moura, mãe de Michele, autista com 7 anos
Juliana e a família de Sergio também tiveram de fazer ajustes, apesar de se sentir “perdida” inicialmente. “A gente ouve muito sobre tratamentos alternativos, cuidar da alimentação pra ver se consegue organizar o cérebro, tantas coisas que a gente nem sabe se vai dar certo, gasta bastante no começo”, desabafa.
“Mais informação, menos preconceito”
Com a chegada do diagnóstico de Sergio, que nasceu no Maranhão, a brasiliense Juliana Cabral mergulhou no tema do Autismo. Ela tornou-se Psicopedagoga clínica e pós graduada em aconselhamento educacional e familiar. A mãe/especialista acredita que tem havido avanços, no entanto ainda é preciso conhecer para conscientizar.
“Ainda não existe respeito, e quando existir vai melhorar bastante a conscientização sobre o TEA. Trazer conhecimento, às vezes as pessoas mal sabem sobre os próprios sentidos, quanto mais entender porque uma criança [autista] age dessa forma, porque pula muito, tampa os ouvidos, não quer comer.”
Mudanças
Questionada sobre quais mudanças gostaria de ver na sociedade sobre o tema do autismo, Vanessa diz que deseja “uma sociedade mais acolhedora e compreensiva, além de mais centros de reabilitação”.
A proposta é parte do objetivo da RAAFA (Rede Adventista de Apoio à família autista), grupo que acolhe pessoas com autismo e quem está ao redor delas. O projeto busca orientar membros e não membros da Igreja Adventista sobre como lidar com as pessoas autistas.
Para a Psicopedagoga clínica Juliana Cabral, palestrante do RAAFA, é preciso ter em mente que a criança autista é, antes, uma criança. Ela explica o que fazer e o que evitar para avançar no acolhimento e conscientização das pessoas autistas.
- Respeitar a essência do ser criança, respeitando as particularidades da infância;
- Conhecer a pessoa e suas preferências de gostos, ambientes, sons, etc.
- Experimentar e estimular as mudanças progressivamente;
- Evite ignorar as características da pessoa e forçá-la a fazer algo.
Fora do padrão (?)
É claro que nem tudo são flores, e as mães fazem questão de serem honestas quanto a isso. Vanessa diz que a filha tem dificuldade de ouvir a palavra ‘Não’, por isso tenta manter o foco para não voltar atrás nas decisões. Juliana conta que Sergio ainda tem problemas com mudanças bruscas na rotina, e às vezes pode se frustrar com alguma facilidade.
Mas nem tudo está ‘fora do padrão’. Na verdade, só quem cuida de uma criança do TEA consegue enxergar e valorizar suas atipicidades como algo único. No caso da Michele, é a memória acima da média que não passa despercebida pela mãe.
Sergio também tem suas realizações marcantes, hoje se comunica muito bem e com ‘todo mundo’. A mãe celebra um episódio comum para a maioria das crianças brasileiras, mas não para seu filho.
“A gente nunca imaginou que ele ia gostar de futebol ou algum esporte coletivo, não tinha interesse por bola. Um pouco antes de fazer 10 anos ele começou a brincar de futebol com os coleguinhas do condomínio. Pra gente está sendo fantástico ver o nosso filho jogando futebol, coisa que é comum para uma criança de dois, três anos!”, brinca Juliana.