São João

Sem toadas: a imensa falta que o São João faz

Devido a pandemia, já são dois anos sem as festas tradicionais juninas no Maranhão.

Foto: Divulgação

Nem nos seus piores pensamentos, a produtora e presidente do Boi de Axixá, Leila Naiva, imaginaria que o boi, de 62 anos de fundação, ficaria dois anos seguidos sem se apresentar nos terreiros, arraiais e espaços juninos do estado.

Pior, que por dois anos não haveria festas juninas. “Eu já nasci com o boi de Axixá, tenho uma paixão inexplicável. Eu tenho um vínculo com todos que compõem a cadeia criativa do bumba-meu-boi como bordadores, costureiros, brincantes, cozinheiros, e vendo toda essa cadeia produtiva parando eu me sinto triste, porque era a fonte de renda que eles tinham”, lamenta Leila Naiva.

Leila, assim como outras centenas de presidentes e amos de boi do Maranhão afora veem pelo segundo ano consecutivo, uma das principais festas tradicionais do estado sendo realizadas apenas virtualmente. Consequência de uma pandemia causada pela covid-19, que há mais de 1 ano vem vitimando milhares de pessoas ao redor do mundo.

Manter a tradição junina, sendo trabalhando como produtor, ou como “fazedor” da brincadeira, requer não apenas talento, dom e paixão, mas recursos financeiros. Recursos esses que, assim como em todos os segmentos da economia, ficaram prejudicados desde que a pandemia se instalou no mundo.

Desde a pessoa que mantem o grupo alimentado, até a pessoa capaz de captar os recursos para botar o grupo bonito na rua, todos foram prejudicados. A alternativa foi buscar formas de conseguir ao menos se manter.

Segundo Leila Naiva, no ano passado o grupo fez 5 lives, sendo uma por edital da Lei Aldir Blanc. Este ano, até agora, tem uma agendada para o dia  23 de junho, e algumas pequenas, patrocinadas. É como o grupo está se mantendo. “A gente não perde a esperança. Mesmo sem um real no bolso eu já vou começando os trabalhos, a gente faz rifa, bota camisa para vender, alguns patrocinadores estão chegando, então a gente vai dando um jeito”, conta.

O  Boi Lendas e Magias (do Centro Histórico), que em 2019, comemorou 10 anos, sofreu um impacto muito negativo com tudo que vem acontecendo. Com 100 integrantes que formam a cadeia produtiva, muitos foram prejudicados, segundo Valkilmer Monteiro, presidente do grupo.

“Os festejos juninos atraem turistas do Brasil e do mundo e ficar sem esses recursos nesse período afeta tudo. Grupos que sobrevivem de apresentações públicas para se manter. Acredito que muitos grupos não vão conseguir voltar à ativa, isso infelizmente é uma realidade. No ano passado tivermos uma ajuda pela Lei Aldir Blanc, mas muitos grupos não conseguiram porque não tinham documentação em dia. Todo ano a gente gasta para atualizar essas documentações e é um custo alto que se a gente não está na ativa não tem como manter. Nós conseguimos graças a uma live que fizemos e com o recurso da ei Aldir Blanc”, disse Valkilmer.

Para este ano, embora o grupo tenha feito participação em eventos como o Arraial da Vacinação, a expectativa é negativa. “Não imaginávamos que também este ano não teria São João. Foi um baque muito grande, Viver sem cultura é viver sem alma. Nós precisamos da cultura para sobreviver. A arte existe porque a vida não basta”, finalizou Valkilmer.

Emoções à flor da pele

Desde o começo de junho, presidente do Boi do João Paulo, Walter David Mendes, o seu Waltinho, anda com lágrimas nos olhos. Quem tem a paixão pela tradição sente forte não só no bolso, mas na alma. 

“A gente está sobrevivendo com muita dificuldade, não só pela parte financeira, mas cultural, emocional. Meus olhos insistem em sair lágrimas desde o dia 13, por mais que eu mude meus pensamentos. Tenho 72, nascido e criado no bairro do João Paulo. Como é que está a minha cabeça? Porque desde pequeno eu vivo essa cultura do bumba-meu-boi”, lamenta Waltinho.

Mas com ou sem pandemia, o boi de promessa e obrigações vai sair este ano, dia 24 vai haver o batizado. Mas tal qual Valkilmer falou acima, seu Waltinho teme que outros grupos e associações não tenham a mesma sorte de se manter na ativa.

“Desde 2001 a gente bota boi para se apresentar e viver essa situação deixa a gente muito ressentido, mas o mais importante é estarmos com vida para ano que vem a gente dar continuidade. Agora, muitas associações não irão voltar, infelizmente, porque não tem como se manter, e quando as festas puderem acontecer não terão recurso para se organizar de novo”, lamenta.

Para o produtor cultural Mário Jorge Gonçaves, produtor da tradicional Festança Junina no Ceprama, que em 2019 fez 15 anos, é muito triste tudo o que está acontecendo, vidas perdidas e o cotidiano todo alterado. A Festança, um projeto pessoal, há 2 anos acontece em formato de live. E a deste ano, precisou ser adiada no mês de maio depois que Mário foi infectado pelo vírus.

“Fui uma vez ao Ceprama, quando seria o dia da festa, e fiquei lá, sozinho naquele local e lembrando de tudo, confesso que fiquei muito triste porque é um projeto pessoal que me causou comoção emocional. Passo o ano todo pensando nela. Ver tudo e não poder fazer, me deixou quase depressivo. Mexeu com o sentimental. Foi muito dolorido, doeu na alma. Mas a gente tem que ter fé em Deus, as vacinas estão chegando e vamos superar tudo isso”, acredita.

Trabalhando especificamente com produção cultural, ele diz que tem uma reserva financeira com a qual está se mantendo, mas lamenta por todos os colaboradores que costumam trabalhar com ele e que ficaram sem renda.

“A gente que respira São João tem que se reinventar. Fiz algumas lives, pelo menos para matar a saudade, mas esperamos em Deus que em 2022 possamos estar presentes, com saúde, para curtir uma nova temporada”, espera.

Para dona Capitolina dos Santos, do Boi Linda Joia de São João (Matinha), ter perdido tantas pessoas da família e próximas foi o que mais triste pode acontecer, aliado à falta do São João.

“Perdemos tantas pessoas queridas. Dois anos que estamos na tristeza. Além disso, nossa vida cultural ficou parada. Sem festas juninas, transporte, restaurantes, pousadas, lojas, comércio informal que gera renda, e a cultura, tudo isso foi impactado. Não estamos fazendo nada, pois sem dinheiro, vivemos na solidão e na expectativa de que a gente possa passar por isso. É muito triste tudo isso”, disse.

Relação com o sagrado

Para Simei Dantas, coordenadora do Tambor de Crioula Arte Nossa, os setores da cultura e da economia criativa estão entre os mais impactados com a crise sanitária. Ela cita os editais e auxílios emergenciais criados para minimizar esses impactos que vieram com a pandemia.

“Porém, não é suficiente para alimentar a cadeia produtiva, até porque muitos produtores, fazedores de cultura não foram contemplados. O Nosso Ponto de Cultura realiza várias atividades durante o ano, e com a pandemia nós estamos passando por um momento muito delicado e muito dolorido. Nós temos um planejamento e com essa crise estamos desanimados, pois temos uma sede para manter, temos as pessoas que trabalham diretamente com a produção, como costureiros, professores e paramos tudo”, disse.

Com a reabertura gradual de algumas atividades e serviços, o Ponto de Cultura deve ser reaberto. “Estamos planejando realizar algumas atividades pontuais cumprindo as medas sanitárias para poder dar uma movimentada na nossa economia, mas temos fé que em breve estaremos junto, que tudo vai passar, que nossos santos padroeiros vão nos ajudar a superar tudo isso. Viva São Pedro, São João, Santo Antônio e São Benedito, porque além da relação econômica, o que nos rege para continuar lutando é essa nossa relação sagrada e isso que vai manter viva nossa cultura”, acredita.

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