"ESTUPRO CULPOSO"

Estupro culposo: entenda a polêmica sobre o julgamento que mexeu com as pessoas, movimentos sociais, entidades e órgãos de proteção à mulher

A defensora pública Lindevânia Martins, chefe do Núcleo de Defesa da Mulher da DPE/MA, afirma que a sociedade tem o dever de apoiar a vítima, para que a mesma leve o caso às autoridades

Mariana Ferrer aparece em vídeo implorando por respeito a juiz, promotor e advogado. Foto: Reprodução

O vídeo do julgamento do caso da influenciadora digital catarinense Mariana Borges Ferreira, conhecida como Mari Ferrer, que acusa o empresário André de Camargo Aranha de tê-la dopado e estuprado em uma boate de Florianópolis em dezembro de 2018, gerou revolta nas redes sociais com as hashtags #justiçapormariferrer e “estupro culposo”. André Aranha foi absolvido no dia 9 de setembro de 2020, pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Já as imagens da audiência foram reveladas nessa terça-feira (3), pelo site Intercept.

No trecho divulgado do vídeo, aparecem na tela Mariana, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que representava o réu no processo, o juiz, um promotor do Ministério Público de Santa Catarina e um defensor público. Rosa Filho apresenta cópias de fotos consideradas sensuais tiradas por Mari Ferrer, enquanto modelo profissional. O advogado define as poses como “ginecológicas” e afirma, em tom agressivo, que jamais teria uma filha “no nível de Mariana”.

Em outro momento, repreende o choro da jovem: “Não adianta vir com este teu choro dissimulado. Falso. Essa lágrima de crocodilo”, e a acusa de ganhar a vida “com a desgraça dos outros”. Entre lágrimas, Mariana pede ao juiz respeito: “Eu só estou pedindo respeito, doutor. Excelentíssimos, eu estou implorando por respeito, no mínimo. Nem os acusados de assassinato são tratados desta forma como estou sendo tratada, pelo amor de Deus. O que é isso?”.

O promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, argumentou que não houve dolo (intenção) do acusado, porque não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar, o que gerou polêmica. “Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”, escreveu Thiago Carriço em sua argumentação, dando origem à revolta nas redes sociais sobre o tão comentado “estupro culposo”.

“A culpa nunca é da vítima”, declarou defensora pública da DPE-MA

Nesta quinta-feira (5), a titular do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE/MA), Lindevânia Martins, por meio de vídeo gravado, pronunciou-se com uma afirmativa que deve ser da sabedoria coletiva: “É importante dizer que a culpa nunca é da vítima. Uma relação sexual para acontecer tem que ter o consentimento da mulher, pois, o corpo é dela. Se ela não consentiu, ou, por alguma razão, não conseguiu expressar seu consentimento, o homem não pode avançar. Caso não tenha havido este respeito, houve o cometimento de um crime”, declarou Lindevânia.

Defensora Pública Lindevânia Martins, titular do núcleo de defesa da mulher da DPE/MA. Foto: Reprodução

De acordo com a defensora pública, as mulheres brasileiras já sofrem de forma rotineira múltiplas formas de violência e preconceito. Ao buscar a Justiça, elas almejam não apenas a merecida reparação contra tais eventos, mas, antes de tudo, acolhimento e respeito à sua condição.

“Existe uma dupla moral na nossa sociedade que reprime a sexualidade das mulheres e incentiva uma agressividade sexual nos homens que as transformam em meros objetos sexuais. Isso faz com que elas sintam vergonha de denunciar os abusos que sofreram porque tem medo de passar pela humilhação de serem julgadas, a partir desse ponto de vista. Daí a importância de que esses casos sejam processados com perspectiva de gênero, compreendendo as particularidades dos crimes contra a mulher”, destacou Lindevânia Martins.

Subnotificações

No Maranhão, segundo a titular do Núcleo de Defesa da Mulher, existem subnotificações de casos de estupro de vulneráveis, principalmente, em circunstâncias parecidas com a de Mari Ferrer. Conforme Lindevânia, a DPE atende com maior frequência a violência doméstica e familiar, quando a mulher já tem um relacionamento com o agressor.

“Dentro dos relacionamentos, sim, infelizmente é comum. Porém, os casos costumam ser motivos de vergonha para as vítimas. O mais comum é que elas cheguem à DPE para falar de outro tipo de agressão, como a física. Às vezes, no decorrer do atendimento, as mulheres mencionam alguma coisa, já outras só revelam algo após passarem por sessões com psicólogos”, informou Lindevânia.

Caso nunca levado às autoridades

A exemplo desta subnotificação – maioria das vezes endossada pelos sentimentos de vergonha, medo e receio – citada pela defensora pública Lindevânia, está o caso de Beatriz  – nome fictício para preservar a identidade da personagem de história real – que em 2007 foi estuprada em uma casa de festa, em São Luís. Beatriz relata que estava na companhia de uma amiga dela, e, durante uma volta pela noite da capital maranhense, as duas decidiram como destino uma boate.

“Mas, antes de chegarmos à boate, paramos num barzinho onde estavam alguns dos nossos amigos. No bar, ingeri caipirosca [bebida etílica com acréscimo de açúcar e fruta cítrica]. Só com isso fiquei um tanto embriagada. Já na boate, tomei dois goles de uísque no próprio copo da minha amiga. Foi somente esta quantidade, e minha cabeça girou, eu estava tonta. Minha amiga estava na companhia de um rapaz com quem ela sempre saía. Como eu estava sem companhia, resolvi sentar em um os sofás do espaço, e logo em seguida dormi”, contou, detalhadamente, Beatriz a O Imparcial.

A vítima maranhense informou, ainda, que acordou com um beijo de um homem estranho, o qual até hoje ela não lembra quem é. Beatriz disse que após o beijo, ele foi embora, mas logo chegou outro que, ao vê-la tentado se levantar, mas com dificuldade, devido à embriaguez, abraçou Beatriz e a levou para um camarote vazio, aparentemente desativado, e rasgou a calça dela da cintura até a coxa.

“Ele fez isto quando eu tinha ‘apagado’ pela segunda vez. Ao acordar, vi o rasgo na minha roupa, e o estuprador ao meu lado dizendo que ‘foi a melhor transa dele’. Eu quis morrer, vomitar, fiquei perturbada, ninguém por perto para me ajudar, a boate já vazia, e minha amiga do lado de fora do espaço já a me procurar. Quando o dia amanheceu, fui à farmácia, comprei ‘pílula do dia seguinte’. Nunca mais misturei bebida, e nunca mais fiquei com ninguém em balada”, relatou Beatriz.

Somos Todos Marianas

Em 2018, Flor de Liz Meneses de Araújo Costa, mãe da publicitária Mariana Meneses de Araújo Costa, assassinada, após supostamente ter sido estuprada pelo então cunhado Lucas Porto, no apartamento da vítima, no dia 13 de novembro de 2016, carecia de um motivo muito forte para continuar sua luta, depois de tamanha perda.

“Minha mãe decidiu transformar seu choro em doação de amor e, com o apoio de familiares e amigos que pensavam de forma semelhante, iniciou o projeto Somos Todos Marianas”, informou Carol Costa, que é vice-presidente da Associação. O projeto foi de fato criado no dia 14 de fevereiro de 2019, e deste então, segundo Carol, realiza palestras sobre violência doméstica e o feminicídio, apoia mães e repassa informações educativas sobre os temas para crianças de escolas de São Luís.

Instituto Somos Todos Marianas foi criado desde 2019, para ajudar vítimas e famílias de violência contra mulher. Foto: Reprodução

O Imparcial pediu à Carol Costa que comentasse sobre o que aconteceu com Mari Ferrer. Em resposta, a vice-presidente do Instituto Somos Todos Marianas enfatizou que a influenciadora digital catarinense foi humilhada no vídeo compartilhado pelo Intercept.

“Fizeram com Ferrer o mesmo que estão tentado fazer com a memória da minha irmã, Mariana Costa, a culpabilização da mulher, ou seja, a mulher passa de vítima para responsável pela violência sofrida, afetando assim todas nós. Mari Ferrer foi submetida a um estupro na alma. Isso que ocorreu é um retrocesso, a impunibilidade de criminosos e a culpabilização da vítima”, declarou Carol Costa, ao se referir à violência moral coletivo que Ferrer sofreu pelos homens engravatados que a cercam no vídeo, cada um no seu quadrado virtual, até a vítima começar a chorar e implorar por respeito.

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