"Xirizal do Oscar Frota"

O dia a dia em um dos principais pontos de prostituição da capital

Fomos ao conhecido “Xirizal do Oscar Frota”, localizado entre as ruas da Manga e Jacinto Maia, para relatar a rotina de um dos recantos mais obscuros do Centro

"Xirizal do Oscar Frota". Foto: Honório Moreira.

Foto: Honório Moreira.

Espremida entre as ruas da Manga e Jacinto Maia, a Travessa do Portinho é um dos recantos mais obscuros do Centro de São Luís, frequentado em grande parte pelos marginais, bebuns e desocupados da cidade. Mas, ao contrário do que a opinião pública insiste em repetir, eles não são os únicos. Também andam por lá alguns “homens de bem”. Sujeitos que têm emprego, esposa e filhos, mas que, vez por outra, vão ao local em busca de prazer. E o prazer, principal fonte de renda de quem trabalha na Travessa do Portinho, é oferecido de diversas formas. Sexo é a principal delas. O intenso comércio sexual, aliás, foi responsável pela mudança de nome (não oficial) da Travessa. Há décadas, o local passou a ser conhecido como “Xirizal”, ou ainda “Xirizal do Oscar Frota”, em referência a um antigo comerciante do bairro que possuía uma grande loja de materiais de construção. Os espaços onde hoje funcionam os bares do “Xirizal” serviam como depósitos da loja do rico comerciante Oscar Frota.

A primeira vez que por lá estive, numa terça-feira, fazia um calor escaldante. O parco espaço das ruas do Centro era disputado por transeuntes, comerciantes e veículos. Todos, sem exceção, capazes de produzir ruídos em escala industrial. Um ruído, em particular, prende a minha atenção: o som das grandes radiolas sobrepostas nas calçadas e dentro dos bares da Travessa do Portinho. Elas anunciam que, por lá, terça-feira também é dia de diversão. Todos os dias são de diversão na Travessa do Portinho.

O relógio marca 15h20. As garotas de programa e os primeiros clientes estão no local desde 8h30. Sigo o som das radiolas, que tocam o onipresente “brega romântico”, e entro no primeiro bar. O local é escuro, abafado e sem janelas. Várias mesas e cadeiras estão dispostas de forma irregular por toda a parte. Homens de meia-idade conversam com garotas vinte, trinta anos mais jovens, desinibidos por causa da cerveja e da penumbra. As garotas riem e bebem; outras, ao lado de homens com panças enormes, não escondem a expressão de tédio e raramente pronunciam qualquer palavra. Vou até o balcão, que também está apinhado de gente ao redor, e peço uma cerveja para a atendente rechonchuda, que de pronto me serve. Não ouso me identificar como repórter, tampouco informo que estou atrás de uma história. Sento em uma das cadeiras de plástico, localizada na parte central do bar, e me ponho a bebericar a cerveja, assim como fazem os outros clientes. Sinto-me observado, um rosto estranho dentro de um universo de figurinhas repetidas. Por sorte, uma figura ainda mais estranha entra no bar e atrai a atenção dos ocupantes.

É uma senhora de cinquenta e muitos anos, vestida em trapos, de cabelos desgrenhados e grudentos, com um pedaço de arame enrolado em uma trouxa encardida que serve para armazenar os seus poucos pertences. A mulher se movimenta com dificuldade, arrastando a perna esquerda – que está estranhamente inchada. Um pedaço de pano imundo serve como esparadrapo para o seu pé igualmente imundo, o que não parece fazer qualquer diferença. Ela caminha de mesa em mesa e, finalmente, chega até mim (de perto, as rugas do seu rosto são ainda mais longas e cavadas). Percebo que, sob o vestido amarfanhado, a mulher guarda uma barriga protuberante, como a de uma grávida. Mas ela não está grávida. Trata-se de um cisto (ou uma hérnia) nunca tratado, como me informaria mais tarde um dos clientes mais antigos do bar. Diante de mim, a mulher, que diz se chamar Essência, estaca e tira da trouxa encardida uma bela camisa social, que provavelmente acabara de surrupiar de algum ambulante desatento das ruas do Centro. Ela quer cinco reais pela camisa. Demoro alguns minutos para convencê-la de que não estou interessado. A cada recusa, ela faz caretas estranhíssimas e passa as mãos pela barriga inchada, jogando a cabeça para trás, numa atuação digna de antigas novelas mexicanas. “Não quero a camisa”, reafirmo. Mas sou, afinal, derrotado pela insistência da senhora e lhe entrego uma nota de dois reais. Ela amassa a nota entre os dedos, enfia a camisa de volta na trouxa e continua a peregrinação pelo bar.

– Ah, essa daí, se a gente der uma vez, ela vicia –, me diz um sujeito baixinho, de pele morena, que acompanhara toda a cena com atenção. – Antigamente, eu sempre dava um trocadinho pra ela, mas aí vi que era só pra fritar no crack. Nunca mais dei.

Mostro-me interessado pela história. O homenzinho, que se apresenta como Mister Jota, pega um copo de cerveja, aproxima-se, e prossegue:

– Faz anos que ela roda por essas bandas. Ela trabalhava aqui, mas aí se acabou no crack. Agora vive na rua, zanzando pra cima e pra baixo. Essa daí não demora muito mais a morrer, não.

Quero confirmar.

– Ela fazia programas aqui?

– Sim, demais. Era uma das mais conhecidas. Mas droga, você sabe como é; a pessoa se acaba. Eu não vou mentir. Eu fumo um beckzinho de vez em quando. Mas nunca deixei de fazer as minhas coisas por causa disso.

Revelo ao homem que é a minha primeira vez no local. Ele não consegue esconder o riso de surpresa e satisfação. E, a partir daí, assume a postura de um instrutor, uma espécie de “guru do xirizal”.

– Eu estou aqui desde ontem, fui em casa rapidinho só trocar a roupa, que estava fedendo, e voltei. Disse pra mulher que tinha um “bico” para fazer aqui no Centro. Já gastei uns R$ 400 de ontem pra hoje – ele me confidencia, com certo orgulho.

Resolvo dar corda ao homem. A cada novo fato, informação ou anedota, concedo-lhe a minha mais caprichada cara de espanto.  Mister Jota, que ganha a vida vendendo cerveja em shows de reggae, me revela que tem 42 anos e que há pelo menos vinte é frequentador do “xirizal”. “Já casei duas vezes, tive quatro filhos, mas não paro de vir aqui”. O único problema, segundo ele, é que de vez em quando “bate um arrependimento”. “É que, às vezes, a gente deixa de comprar as coisas em casa para gastar aqui”, diz. “O negócio é ser esperto, deixar dinheiro guardado em casa. Eu posso dizer a você que tenho R$ 800 guardados em casa”.

Mister Jota é um grande conhecedor do local. É ele quem me informa que todos os bares da Travessa do Portinho possuem quartos que são alugados para a realização dos programas. Os quartos são minúsculos, sem janelas, e possuem apenas uma cama e um pequeno banheiro; as colchas e lençóis raramente são trocados. Esses espaços são alugados em média por R$ 20 – destinados ao dono do estabelecimento. O preço dos programas varia entre R$ 20 e R$ 60. “Mas de R$ 20 é só puta feia”, Mister Jota me garante, com a propriedade de quem frequenta o lugar desde a segunda metade da década de 1990.

O movimento do bar aumenta. Em uma mesa de canto, cinco mulheres, todas com menos de trinta anos, conversam e bebem, algumas fumam, esperando o chamado de algum cliente. Diferente do que eu supunha, as mulheres do Oscar Frota quase não se dão ao trabalho de abordar ninguém. As idas e vindas dos quartos, aliás, são bem discretas. A chegada de um sujeito bem vestido, de camisa de botão e sapato social impecavelmente limpo, chama a atenção das mulheres. O homem não se senta e constantemente olha, através dos seus óculos de armação exagerada, o movimento de fora do bar, visivelmente temoroso de ser visto por ali. Na verdade, ele não quer ser visto por ninguém além das garotas que bebem e fumam. Seu receio, porém, se mostra injustificado. A fauna heterogênea e despreocupada do bar não demonstra o menor interesse em sua figura, tampouco nota quando ele chama, com um leve balançar de cabeça, uma das mulheres que está sentada. A morena levanta sorridente e vai ao encontro do homem. Os dois cochicham algumas frases e, depois, seguem para os fundos do bar, por detrás de uma grande radiola, em que fica um dos quartos. Marco o tempo no relógio. O programa dura exatamente 22 minutos e 47 segundos, e, então, o homem sai do bar com passos apressados, enquanto a mulher retorna à mesa onde as suas amigas estão, guardando o mesmo riso dissimulado no rosto.

Mister Jota agora está sentado ao meu lado, falando sem parar, por vezes cochichando algo que julga mais polêmico. Não demora muito e outra figura quase folclórica do bar junta-se a nós, a convite de Mister Jota. Cícero, um senhor de 64 anos, que frequenta o lugar há mais de quarenta. Cícero é ainda mais baixo que Mister Jota e tem o rosto amassado pelo tempo. O nariz, enorme, só não chama mais atenção que a sua boca quase sem dentes. Os poucos dentes de Cícero, que bravamente resistem à sua descarada falta de higiene, estão enegrecidos, o que não parece incomodá-lo de forma alguma. Ele tem o riso frouxo e, assim como Mister Jota, gosta de contar histórias. A essa altura, a mesa está repleta de garrafas de cerveja. Cícero conta que, na juventude, passava uma semana inteira no “xirizal”, sem voltar para casa.

– Eu era pescador lá em Cururupu. Pescava, ganhava um dinheiro bom e vinha pra cá. Passava cinco dias com as putas. Levava, às vezes, duas ao mesmo tempo para o quarto, fazia um estrago. Ficava até acabar o dinheiro, aí voltava para o mar para ganhar mais. Era novo, aguentava o tranco. Hoje, eu bebo e no outro dia fico todo me tremendo, sem conseguir levantar da rede. Minha mulher precisa levar chá para mim e tudo.

Mesmo com as tais tremedeiras, Cícero bate ponto nos bares da Travessa do Portinho todas as terças e sextas-feiras. Pelos próprios cálculos, já foi para cama com mais de 500 mulheres do Oscar Frota. “Nunca precisei do azulzinho!”, ele afirma, orgulhosamente, com o indicador em riste. “Nesse tempo todo, só falhei uma vez, porque a mulher não foi carinhosa”. Mister Jota completa: “tem muita mulher aqui que só quer saber de dinheiro. Entra no quarto, dá umazinha e depois não olha mais nem na tua cara, te trata como um cachorro”. A conversa é interrompida com a chegada de uma garota, que aparenta ter no máximo 18 anos. Ela se aproxima de Mister Jota sem mostrar qualquer embaraço. A garota usa maquiagem pesada, em tons escuros, e um short curto que deixa à mostra boa parte de suas nádegas. Ela quer o celular de Mister Jota emprestado para fazer uma ligação. Tenta uma, duas vezes, sem sucesso. Então, devolve o aparelho e volta rebolando para a companhia do sujeito que a aguardava em outra mesa, sem tirar os olhos de cima dela um único segundo, como um cão de guarda. Mister Jota guarda o telefone no bolso, toma um gole de cerveja:

– Está vendo? Ela que veio falar comigo. Eu tenho um “chama” pra mulher e pra conversa.

Mister Jota orgulha-se de ser um sujeito de conversa fácil. E, motivado pela abordagem da garota e incontáveis copos de cerveja, ele decide que é chegada a hora de um de nós ir para a cama com uma das dezenas de mulheres que estão espalhadas pelo bar. “O amigo não vai querer pegar uma, fazer um teste-drive?”, ele me pergunta. Tergiverso. Explico que, hoje, quero apenas conhecer o lugar, jogar conversa fora, quem sabe numa próxima. “De besta que você é”, Cícero me interrompe. E, quase que imediatamente, como que para esfregar na minha cara, escolhe uma das mulheres e segue para um quarto. Dali a pouco retorna com ar maroto: “Estou levinho, levinho”.

Procuro saber dos dois sobre a violência da Travessa, que é um conhecido reduto do tráfico de drogas. Quem responde é Mister Jota, de peito estufado e cabeça pendendo um pouco para a esquerda: “Olha, o cara aqui não pode vacilar. O segredo é ser doidão. Aqui, se alguém perceber que você é frouxo, medroso, você pode arranjar problema”. Comento sobre as tentativas do poder público de acabar com a prostituição na área. “Se derrubarem esse bar aqui, num instante nasce outro igual. Não tem como acabar com isso aqui”, Mister Jota vaticina. E é bem provável que ele esteja certo. Não foram poucas as tentativas da prefeitura de acabar com o “xirizal”. Desde 2010 intervenções vêm sendo feitas na área. Em 2015, o principal bar da Travessa do Portinho foi derrubado para servir como estacionamento. O movimento, por vezes, chega a diminuir. Mas, teimosamente, o Oscar Frota resiste. E hoje funciona a todo vapor, como um mundo à parte, com suas próprias regras, desligado do vaivém frenético do Centro da cidade.

“Eu saio dizendo que vou para casa de amigas”

A popularidade do “Xirizal do Oscar Frota” fez com que o local virasse tema de música na voz de Roberto D’Oludo, pseudônimo de José Ribamar de Jesus Pereira. A letra celebra a grande variedade de mulheres do local. “Eu fui lá no xirizal do Oscar Frota/ ah, meu Deus, mas como tem muita cocota”. São mulheres de todas as idades, formas e tamanhos, que passam o dia inteiro bebendo e fumando a espera de clientes. Elas chegam ao local por diversos motivos. Algumas por necessidade, por não conseguirem outra fonte de renda. Outras, porque gostam do dinheiro “fácil”.

Em minha segunda ida ao “xirizal”, dois dias depois da primeira, conversei com uma delas. Dalila, uma jovem de vinte anos. Esclareço que não tenho interesse em nada além de conversar. A garota, tímida, aquiesce com um balançar de cabeça. Dalila tem o rosto ainda povoado por espinhas, braços finos e uma folha de maconha tatuada na mão direita, abaixo do polegar. Ela parece uma menina, principalmente quando sorri acanhadamente, revelando o aparelho que comprime os seus dentes pequeninos e amarelados.

Dalila me revela que está no “xirizal” há uma semana e que foi levada por algumas amigas que já trabalham no local. “Vim trazida por elas, que me disseram que aqui era muito bom para trabalhar”. Pergunto com que idade ela começou a fazer programas. “Nem me lembro mais”, ela responde. Dalila garante que se prostitui porque gosta. Ela mora com os pais no bairro da Liberdade, e em todas as tardes sai a caminho do Oscar Frota, onde fica até as primeiras horas da noite. “Eu saio dizendo que vou para a casa de amigas”. Dalila cobra R$ 60 por programa. Em sua primeira semana de “xirizal”, calcula que já fez mais de 50 programas. É um lucro de mais de R$ 3 mil.

Mas nem todos vão ao Oscar Frota em busca de sexo. Alguns homens, solitários, querem apenas beber em companhia de uma mulher. Pergunto sobre a variedade de clientes. “São sempre os mesmos. Sempre as mesmas caras”, Dalila garante. A maior parte dos clientes do “xirizal” é composta por quem trabalha ou mora na região. Mas também existem clientes como Mister Jota e Cícero, que moram longe, mas frequentam o local com assiduidade. Enquanto conversa comigo, Dalila faz sinais para uma mesa do outro lado do bar. O dever a chama. Sinto que também é chegada a minha hora de ir. Já abusei demais da indiferença do local. Saio do bar e volto às ruas do Centro. Deixo a Travessa do Portinho para trás. As radiolas continuam tocando os bregas românticos, cantados por homens de vozes irritantemente agudas. É dia de festa na Travessa do Portinho. Todos os dias são.

*Alguns nomes e locais foram alterados para preservar as identidades dos entrevistados.

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