Encontro dos Bois de Matraca

A tradição do Festejo de São Marçal

Grupos de bumba meu boi do Maranhão mantêm a tradição e fazem homenagens a São Marçal no bairro do João Paulo

Karlos Geromy

Será sob o som das matracas e pandeirões que os grupos de bumba meu boi do Maranhão anunciarão, amanhã (30), Dia de São Marçal, o encerramento oficial dos festejos juninos, que será marcado pelo grande Encontro dos Batalhões de Bumba Meu Boi, no bairro do João Paulo, com início desde as 6h da manhã, estendendo-se até a madrugada do dia 1º de julho. A festa reúne milhares de pessoas todos os anos.

A Festa de São Marçal surgiu a partir da proibição aos grupos de bumba meu boi de seguirem para a área do Centro da cidade, sob pretexto de manutenção da segurança, ordem e tranquilidade. A polícia não permitia que os brincantes passassem do Areal do João Paulo. Lá mesmo, eles se encontravam e desde então o encontro dos grupos de bumba-boi foi se consolidando a cada ano e se expandiu, tomando proporções gigantescas.

Na pesquisa Os Batalhões pesados, escrita por Abmalena Santos Sanches, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora substituta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e professora do Uniceuma, desde a primeira metade do século XIX até a metade do século XX, os grupos de bumba meu boi não eram vistos com “bons olhos” pela elite de São Luís, por isso foram proibidos de entrar no centro da cidade, restringindo-se seus espaços aos bairros do João Paulo até o Areal (onde hoje é o bairro do Monte Castelo), Anil e zona rural da ilha. Nesse período, a imprensa maranhense, assim como a nacional, condenavam a ‘brincadeira’, considerando-a folguedo estúpido e imoral, uma brincadeira própria de negros que atentavam à boa ordem, à civilização e à moral […] logo no Maranhão, o bumba meu boi foi reprimido pelos órgãos estatais, chegando ao ponto de total proibição de apresentação do boi no período de 1861 a 1867.

De acordo com Abmalena Santos Sanches, sendo o bumba meu boi uma manifestação cultural produzida por “esse pessoal matador de boi e pescador”, pertencente, portanto, aos setores populares, era discriminado e rejeitado por setores da elite ludovicense dessa época, que tinha “como modelo de civilidade a Europa e um orgulho todo especial de ‘ter sido fundada pelos franceses’ e de ser considerada a Atenas Brasileira”. Em seu trabalho, Abmalena Santos Sanches afirma em sua pesquisa que, então, para essa mesma elite, era inadmissível que essas manifestações populares, sempre vistas como coisas de negros, “bêbados”, “baderneiros” e “ladrões”, pudessem compartilhar com ela do mesmo espaço social, o qual considerava como seu, de direito”. Assim, como narra o ex-cantador do Bumba-boi da Madre Deus, Sr. José Costa de Jesus, conhecido como Zé Paú, “as apresentações iam até o Posto Fiscal e voltavam, não podiam passar. Eu tenho impressão de que incomodavam o povo antigamente. […] No São João, no Centro da cidade, tocavam fogos, foguetes, mas não havia o boi, porque não podia passar”.

Preconceito com o boi

O preconceito, o desprezo e as proibições em relação às manifestações advindas dos setores mais pobres da sociedade maranhense se perpetuaram por vários anos. Até por volta dos anos de 1950, o bumba-boi era alvo de discriminação ativa. Podia-se ouvir até mesmo nas rádios pessoas que condenavam e “falavam mal desta brincadeira, que não tinha êxito porque era feita por pessoas pobres, pretas, feias e analfabetas; que os tambores de crioula eram para serem dançados por misses”.

Abmalena Santos Sanches cita, na sua pesquisa, que já na década de 1930, mais precisamente no ano de 1939, um grupo de bumba-boi dançou pela primeira vez dentro da cidade e, em 1940, dançou no bairro do Areal (hoje Monte Castelo). A partir daí, o bumba-boi passou a se apresentar na cidade. O Sr. Zé Paú guarda em sua memória um episódio importante, do início dos anos 1960. Conta ele que o então presidente da República, João Goulart (1961 a 1964), veio visitar a cidade de São Luís e o grupo de Boi da Maioba foi convidado a se apresentar no Palácio dos Leões, sede do governo do estado.

Segundo Abmalena Santos Sanches, tais dados podem refletir que, mesmo durante o período de proibição e nos anos de repressão militar, os grupos de bumba-boi tinham certo acesso e eram aceitos por parte da elite política e social da cidade, uma parte bem pequena, diga-se de passagem, mas fundamental na medida em que corrobora para alterar concepções e olhares sobre o bumba-boi. Assim, este vai adquirindo, com o decorrer dos anos, outros sentidos e atribuições, passa a desfrutar de espaços na mídia com as primeiras gravações de discos de bumba-boi, e a frequentar outros ambientes, sendo, inclusive, solicitado a viajar para outros estados, representando o Maranhão; passa a receber os primeiros incentivos através dos órgãos oficiais de Cultura, o que levaria ao início da institucionalização das brincadeiras, que precisam se cadastrar junto à Maratur (Empresa Maranhense de Turismo), criada no final dos anos 1960 pelo então governador José Sarney – política continuada no governo da sua filha Roseana Sarney – e que na época coordenava as atividades relacionadas às manifestações culturais do estado.

Karlos Geromy

Outra versão da origem da festa

O site da Prefeitura de São Luís divulgou este texto sobre a origem da festa: “Apontam que um dos principais responsáveis pelo encontro de bois foi o saudoso José Pacífico de Moraes, mais conhecido como Bicas, nascido em 1901 e falecido em 1972. Tudo começou quando ele, após assistir no bairro Anil diversas apresentações de bumba meu boi, principalmente dos grupos do Sítio do Apicum e de São José dos Índios, ficou bastante empolgado e resolveu contratar as duas brincadeiras para fazerem apresentações no bairro do João Paulo, onde residia.

Em 1929, os grupos, ao se deslocarem para o João Paulo, foram se multiplicando, iniciando a tradição do encontro de São Marçal e, por conseguinte, da própria aceitação da brincadeira de bumba meu boi nos bairros urbanos. Daí em diante, o bairro do João Paulo passou a ser a sede das mais diversas brincadeiras folclóricas, principalmente, na época das festas juninas, tornando-se, naquela oportunidade, o único arraial longe dos terreiros do interior da Ilha e muito próximo do centro de São Luís.”

Título a Patrimônio da Humanidade

Este ano, o encontro de grupos de bumba meu boi no bairro do João Paulo terá uma motivação a mais por conta do anúncio de que a manifestação cultural mais importante do estado pode se tornar Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. O Complexo Cultural do Bumba meu boi do Maranhão já havia conquistado antes, por conta de sua importância, em 30 de agosto de 2011, o título de Patrimônio Cultural do Brasil. O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan, em Brasília, aprovou, por unanimidade, a candidatura do bumba meu boi do Maranhão para a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. O diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan (DPI), Hermano Queiroz, comunicará oficialmente à população ludovicense e aos “boeiros do estado”, a candidatura do bem cultural Complexo Cultural do Bumba meu boi a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, da Unesco.

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