Semana Santa

Judas era culpado ou inocente?

O Sábado de Aleluia é marcado pela tradição milenar e mundial de “malhar” o Judas. Considerado traidor, Judas Iscariotes, tesoureiro dos apóstolos, amargou um alto preço por entregar Jesus

Quadro "O Beijo de Judas" de Caravaggio

É na quaresma e quando se aproxima a semana santa que Judas é mais fortemente lembrado pela maioria dos cristãos. Judas Iscariotes, citado nos Evangelhos como um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, é sinônimo de traição. Segundo o Evangelho, aquele que traiu Jesus, o Salvador; aquele que vendeu Jesus aos soldados romanos por 30 moedas de prata.

Quantos de nós já não nos referimos a alguém como Judas? E quanto à malhação de Judas, tradição e costume que ocorre em todo o mundo no Sábado de Aleluia e onde “personas non gratas” são personificadas à figura dele? Ao longo da história, muito se falou sobre ele. Traiu mesmo? O que houve? Quem foi de fato Judas? O que se sabe sobre ele?

Segundo o Novo Testamento, Judas foi o único dos apóstolos que não nasceu na Galileia. Por ser o mais instruído, tornou-se o tesoureiro dos apóstolos, foi designado para cuidar do dinheiro comum. Foi enganado pelos sacerdotes, que o induziram a mostrar onde estava Jesus a troco de 30 moedas de prata, que naquele tempo correspondia ao preço de um escravo, prometendo que só o prenderiam durante as festividades da Páscoa Judaica.

Sobre o assunto e sobre as dúvidas que ainda param sobre a cabeça de várias pessoas, conversei com o historiador Claunísio Amorim Carvalho. Ele é bacharel em Teologia (FATEH), bacharel em História (UFMA), mestre em História Social (UFMA) e professor de História Eclesiástica no Instituto Superior de Teologia Reformada, em São Luís, instituição vinculada à Igreja Presbiteriana do Brasil.

 

OITO PERGUNTAS// CLAUNÍSIO AMORIM CARVALHO

Quem foi Judas?

No Novo Testamento, há cerca de oito pessoas com esse nome, que era um nome comum, equivalente grego do nome hebraico Judá, e significa “louvor”. O mais famoso deles é Judas Iscariotes. Seu pai se chamava Simão Iscariotes (Jo 6.71; 13.26), e este sobrenome (que quer dizer “de Queriote”) indica seu provável local de nascimento. Na Bíblia, há duas cidades com esse nome: Queriote (Jr 48.24, na região da antiga Moabe) e Queriote-Hezron (Js 15.25), cerca de 20 km ao sul da cidade de Hebrom, na Judeia, no antigo território da tribo de Judá, o que tornaria Judas o único apóstolo não galileu.

O que destacar da história dele?

Chamado por Jesus talvez pela inteligência, dinamismo e perspicácia, provavelmente pertencente a alguma facção nacionalista judaica, a exemplo dos zelotes (como outro apóstolo, Simão Zelote), aparece em último nas listas dos doze apóstolos (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.14-16), sempre identificado pelo adjetivo “traidor”. Apesar de ter realizado obras miraculosas juntamente com os outros discípulos, é apresentado como pessoa de má índole (“ladrão”, conforme Jo 12.6), indicado por Jesus como alguém de caráter diabólico (conforme Jo 6.70), alguém que se viu mesmo possuído por Satanás (Lc 22.3; Jo 13.2,27) antes de sair para entregar seu Mestre pela quantia de trinta moedas de prata. Talvez acreditando que Jesus pudesse escapar dos seus algozes, usando de seus poderes, ou mesmo tornando-se um líder na resistência contra a dominação romana, Judas frustra-se ao perceber que a prisão de Jesus gera a condenação deste à morte, e por isso mesmo Judas, tocado de remorso, devolve as moedas de prata aos principais sacerdotes e anciãos e em seguida suicida-se (Mt 27.3-5).

O que Judas representa?

Acima de tudo, representa o pecador impenitente, aquele que, tendo ocupado uma posição privilegiada ao lado do Senhor, troca o caminho árduo e estreito da cruz pelo da facilidade, do egoísmo e da ganância, encontrando um fim trágico e muito triste. Destino bem diferente de seu colega Pedro, que também traiu o Mestre ao negar por três vezes conhece-lo, mas que se arrependeu e chorou amargamente (Mt 26.75), encontrando não só o perdão divino, como também passando a viver uma nova vida desde então, protagonista dos dez primeiros capítulos do livro de Atos dos Apóstolos e autor de duas epístolas do Novo Testamento.

O que é lenda e o que é verdade sobre ele?

Jesus, os discípulos, autoridades judaicas e romanas, outras personagens, lugares e circunstâncias, sobrevivem em relatos de historiadores não cristãos, como o romano Tácito e o judeu Flávio Josefo, em escritos de antigos autores cristãos (pais apostólicos, pais da Igreja, apologistas e cronistas), em achados arqueológicos, em tradições muito antigas, etc., de modo que negar a historicidade disto ou daquilo outro referente a Jesus e aos textos do Novo Testamento (estima-se que haja cerca de 6 mil cópias de manuscritos em grego e 9 mil em outras línguasantigas, como o siríaco, o copta, o latim e o árabe, quando autores gregos clássicos como Heródoto, Tucídides e Platão não atingem sequer 10 manuscritos cada um deles), chega a ser temerário, caindo tantas vezes no abismo do mero preconceito. Contudo, e obviamente, que tais narrativas e ensinamentos caminham também e, sobretudopelo terreno da fé, e aí é uma questão de foro íntimo.

Por quê?

Ninguém é obrigado a crer ou a descrer. Lembro de duas questões importantes agora, que são: a) a forma da morte de Judas – aparentemente há duas versões distintas no NT, uma em Mt 27.5 (enforcamento) e outra em At 1.18 (teria despencado de um lugar alto), podendo ser esta em consequência daquela; além de uma terceira versão contada por Papias, um dos pais apostólicos, segundo a qual Judas, acometido de uma doença terrível, teria sido esmagado por uma carroça. Além de outras versões diferentes; b) a segunda questão diz respeito ao “Evangelho de Judas”, escrito atribuído a gnósticos de meados do século II, em língua copta, descoberto na década de 1970 em Beni Masar (Egito), que pertenceu à National Geographic e foi vendido à fundação suíça Maecenas, que o traduziu e o publicou no ano de 2006, segundo o qual Judas, ao trair Jesus, estava apenas cooperando com Deus, obedecendo-lhe o desígnio, em outras palavras, “fazendo o serviço sujo”, que alguém teria de fazer e, portanto, não pode ser considerado traidor de fato. Nos círculos cristãos, trata-se de escrito apócrifo, portanto, sem validade para a fé, cujo objetivo parece ser a mera reabilitação de Judas.

Ilustrações da Santa Ceia em que Judas aparece com um saquinho na mão identifica a traição ou não necessariamente?

Exercício de imaginação. Há duas possibilidades para a inspiração do artista, e neste caso me refiro a Leonardo Da Vinci. Ou o pintor aludia à bolsa que Judas carregava, sendo ele o tesoureiro do grupo, conforme Jo 12.6, responsável pelas arrecadações que certamente cobriam as despesas das viagens e da alimentação, o que sugere que Jesus tinha confiança nele, ou era a sacola na qual guardava o preço da traição, as trinta moedas de prata, entregues a Judas antes da Santa Ceia, conforme Mt 26.14-15.

Sobre a tradição da malhação de Judas?

É difícil falar na origem do costume, porque nem sempre ela é uma só. A malhação ou queima de Judas existe em vários países de tradição católica romana ou ortodoxa, talvez até sintetizando costumes pagãos, e consiste na confecção de um ou mais bonecos feitos de pano, recheados de palha ou outros materiais, geralmente caracterizando pessoas cuja imagem são oportunamente criticadas (a exemplo de políticos, etc.), expostos à vista pública durante a Semana Santa e destruídos no Sábado de Aleluia, véspera do Domingo de Páscoa. Alguns interpretam como uma espécie de “vingança” à traição do discípulo.

O costume foi trazido por espanhóis e portugueses para a América Latina no período colonial e está presente em vários países de diferentes continentes assumindo características e nomes próprios variando de lugar para lugar. Há um famoso quadro de Debret, pintado em 1823, intitulado “A queima do Judas”, que retrata o costume no Brasil no início do século XIX.

Existem outras formas dessa simbologia?

A cultura é sempre algo muito dinâmico e é possível que de uma mesma matriz tradicional se originem práticas bem diversas em diferentes lugares. Por isso, num lugar se queima o boneco, noutro ele é enforcado, noutro ele é esquartejado, noutro acontece tudo isso no mesmo evento.

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