Leia ‘A mulata é a tal’, do Juiz Aureliano Neto
Mesmo porque o teu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, todos querem o teu amor
Quer queiram ou não, a mulata é a tal. Mesmo porque o teu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, todos querem o teu amor. Mas, contrariando esses louvores machistas, estão querendo, os afoitos e intolerantes de sempre, preconceituosos de si mesmos, cassar o mandato de rainha do carnaval da mulata brasileira. Não sei se terão êxito nessa façanha destrutiva do que Gilberto Freyre chamou de “mulatismo cultural”. Muita gente, entre as quais entro de mansinho, está demonstrando a sua insatisfação. A coisa, com licença da má palavra, sem racismo, hem?!, está ficando preta, diriam os antigos, sem querer insinuar que branco é branco, preto é preto, mas com certeza, insisto, a mulata é a tal.
A música brasileira é cheia de morenices, mulatices, trejeitices e de neguices. Mas a mulata está sempre presente. Ora como mulata mesma, ora como morena. João de Barro e Antônio Almeida nos legaram o canto eterno de A mulata é a tal, marchinha carnavalesca que atravessou o tempo, sempre cantada pelos blocos de rua e nos salões, isso desde 1947, ano do meu nascimento e de muita gente que anda por aí e que ainda brinca o carnaval, repetindo o estribilho de que a mulata é a tal. Os dois primeiros versos definem a distinção da raça brasileira, para concluir pela exaltação da mulata: Branca é branca preta é preta / Mas a mulata é a tal, é a tal. Já os Irmãos Valença e Lamartine Babo cantaram a mulata de um modo mais incisivo, definindo-a a partir do seu cabelo, da sua cor, que não pega, e da metáfora que a identifica como a alma cor de anil. Talvez seja a marchinha que melhor enfatiza a nossa origem, centrada na miscigenação do negro com o branco. A mulata é mulata pelo cabelo, pela cor, que não pega, para rimar com o cabelo que não nega a cor mulata, mas, ainda assim, o branco quer sempre o seu amor. A letra acentua essas diferenças, sem esconder o sentido racista de ser mulata: O teu cabelo não nega, mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega, mulata / Mulata, eu quero o teu amor. E lua invejando faz careta / Porque, mulata, tu não és deste planeta.
O mesmo Lamartine Babo deixou de lado a mulata e passou a cantar a morena e outra vez ressalta as diferenças da cor. A morena é linda, linda morena, que faz penar. A lua cheia que tanto brilha, não brilha tanto quanto o seu olhar. E aí vem o branco, que não dispensava as negras para, deitando-se com elas, fazer-lhes os filhos mulatos, porque nascidos sem serem brancos nem negros. Ou filhos morenos, paridos de cor escura, entre o branco e negro ou mulato. Quando os pais chegavam ao cartório para o registro. Tez, acrescentava o tabelião: morena, numa fuga do colonizador branco e do colonizado negro. E marchinha Linda morena enfatiza essa diferença, para enaltecer a morena: Tu és, morena, uma ótima pequena / Não há branco que não perca até o juízo / Onde tu passas / Sai às vezes bofetão / Toda gente faz questão / Do teu sorriso.
Ataulfo Alves, compositor, em parceria com Mário Lago, de Ai, que saudades da Amélia, a mulher submissa que passava fome ao lado do seu homem e ainda achava bonito não ter o que comer, cantou sozinho, sem parceiro, a mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando sossego da gente e que finge que não sabe que tem feitiço no olhar. É a mesma mulata de João de Barro e Antônio Almeida e de Lamartine, que, em 1964, é também cantada por João Roberto Kelly na célebre marchinha Mulata Bossa Nova, feita para homenagear a primeira negra (mulata), Vera Lúcia Couto, que foi eleita Miss Estado da Guanabara, concorrendo, naquele ano de 64, para Miss Brasil, para conquistar o segundo lugar. Diz a história que, no concurso de Miss Guanabara, quando passava pela passarela, uma mulher, como se estivesse na casa-grande, berrava: – Sai daí, sua crioula! Sai daí. O teu lugar é na cozinha! Vê-se que o mundo é o mesmo. É a mesma casa-grande e a mesmíssima senzala. Mas a mulata não mudou, continua a tal.
Em Pois é, um dos grandes sambas do mulato Ataulfo Alves, ele fala não da mulata mas da morena que foi embora e que gozava da reputação de ser maioral. João Roberto Kelly enaltece a Maria sapatão, que de dia é Maria e de noite é João. Essa fere os brios da homossexualidade feminina, porquanto a trata com o designativo preconceituoso de sapatão. Daniela Mercury e outras figuras do cenário nacional quebraram esse estereótipo preconceituoso. Mas será que ela é? Ou será que ele é? Ainda é João Roberto Kelly, que, de forma irônica, no carnaval de 1964, com o sucesso da marcha Cabeleira do Zezé, levanta essa dúvida: Será que ele é? Será que ele é? Será que ele? Será que ele é bossa nova? Será que ele é Maomé? Parece que é transviado. Mas isso não sei se ele é. No final, o refrão: Corta o cabelo dele! Bem. Aí se tem a crítica a uma época em que o cabeludo era mal visto. Podia ser, podia não ser. E, ao mesmo tempo, a premonição dos dias atuais, quando é medievalizado o preso indo para cadeia com as madeixas desbastadas.
O grito de guerra foi lançado. Os Trumps da moralidade tupiniquim ensarilharam as armas para combater esses insultos contra a negra brasileira, que não pode, sob a falsa denominação de mulata ser a tal. E muito menos ter cabelo e cor de mulata. Os tempos são outros. A senzala acabou. Branca é branca; negra é negra, e a mulata, insiste a turma da moralidade, não é a tal. E eu daqui desse cantinho, como um jumento teimoso, na beira da estrada, digo: a mulata é a tal. Que se danem!