Um debate sobre limites éticos do jornalismo e de produção de conteúdo está movimentando as redes sociais desde ontem. Em questão de segundos, após a trágica morte da filha de uma jornalista, um abaixo-assinado idealizado pela também jornalista Marta Barros “viralizou” nos grupos de aplicativo de mensagens de texto, e o que começou com objetivo de reunir apenas 15 pessoas, já possui mais 150 assinaturas (até o fechamento desta matéria) apenas na lista atualizada por Marta. Várias outras listas foram criadas e centenas de compartilhamentos foram feitos ganhando a adesão de jornalistas de outras cidades brasileiras.
Assinada por profissionais de Comunicação, mas dirigida a toda a sociedade, o texto “repudia a conduta antiética, irresponsável, insensível e desumana de blogueiros que, ignorando os princípios jornalísticos, divulgam com sensacionalismo dramas que atingem indivíduos e famílias maranhenses, numa clara demonstração de desrespeito à dor e ao sofrimento alheio, como o verificado nesta data com o acontecido com a filha de uma colega de profissão, quando os blogs exploraram sem qualquer pudor informações, especulações e até fotos retratando o drama”, diz o início do texto.
Para Marta, o documento é para “em nome do verdadeiro jornalismo, conclamar colegas, entidades de classe e autoridades competentes a se manifestarem em relação a esse tipo de conduta que tem se tornado rotineira por parte de blogueiros”.
“Me senti agredida pelas possofrimento que, imagino, se abateu sobre a família dessa garota. Creio que assim como eu todas as pessoas que têm família e que valorizam os laços familiares também se sentiram agredidas, impactadas, chocadas. Chega de tudo isso. A sociedade, a humanidade não precisam disso, não podem se alimentar desse tio de coisa. Precisamos dar um basta nisso. Todos os cidadãos. E nós, profissionais da Comunicação, temos o dever e a obrigação de encampar essa luta e de mostrar à sociedade que esse tipo de coisa nunca foi e nunca será jornalismo. Agora uma observação: a nota é nossa, profissionais da Comunicação. Mas a causa é de todos”, afirma Marta Barros.
A jornalista Andrea Viana fez um apelo pela rede social Facebook. “Não divulguem de forma sensacionalista os dramas alheios, não compartilhem fotos de tragédias que expõem as pessoas, suas famílias e seus amigos em um dos momentos mais sensíveis de suas vidas. Cada vez que você compartilha uma foto assim, em nome da curiosidade mórbida, está magoando, ferindo, tripudiando sobre o sofrimento de alguém. Quando sentir vontade de mandar para um amigo ou publicar uma foto de alguém que acabou de morrer, pense ‘e se fosse alguém que amo, gostaria de ver essa foto circulando o mundo?’. Pois bem, o desconhecido da foto também é um ser humano como você e tem pessoas que gostam dele. Por isso, peço não apenas em respeito à filha de Maristela, mas em respeito a todas as filhas e filhos, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas do mundo não compartilhe fotos dramáticas. Não transforme em circo a delicada condição humana”.
A forma como a tragédia foi divulgada nas primeiras horas em que ocorreu fomentou um debate acirrado e há várias sugestões para que ele se amplie para fora das redes sociais. Para Marta Barros, a ideia sempre foi essa, mobilizar os colegas e a sociedade. “Acho que o ‘pontapé inicial’ para repudiar esse tipo inadmissível de conduta foi dado. Cabe a todos nós, cidadãos, darmos continuidade a essa manifestação que visa, sobretudo, preservar a intimidade, a dignidade e o respeito pelo ser humano”.
Para o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Luís, Douglas Cunha, a mobilização da categoria é contra os absurdos que todos praticam. “Não só blogueiros e ou pessoas que não têm diploma. Todos nós em algum momento, num deslize qualquer, involuntariamente, cometemos alguma coisa assim. As discussões sempre são salutares, mas vamos evitar acirramentos que em nada ajudam”, pede.
O jornalista Márcio Jerry propôs um seminário. “Algo como Direito Humano à Comunicação – limites éticos e responsabilidade social. Pode ser algo com co-promoção do PM, Judiciário, Assembleia, Sindicatos Jornalistas, Radialistas, enfim… A SECAP (Secretaria de Estado de Comunicação e Articulação Política), desde já manifesta apoio e disposição em ajudar a organizar”, sugere.
Douglas Cunha diz que o Sindicato já estava tomando providências antes desse fato para realizar um Seminário a respeito. “Nós já estávamos articulando isso. Vamos abordar possíveis erros e crimes cometidos por jornalistas ou não. Cuidaremos para que seja amplo com o propósito de qualificar para melhor, no aspecto da ética, a comunicação. O Dr. Carlos Nina, advogado que representa o Sindicato, jornalista das antigas e ex-presidente da OAB, está trabalhando o formato do Seminário em parceria com o Clube dos Advogados. A data será divulgada em breve”.
Lissandra Leite, jornalista e amiga de Maristela Sena, relatou uma conversa que as duas tiveram pouco dias antes de Lara Sena falecer. Maristela estava incomodada com a profusão de fotos de pessoas vítimas de mortes violentas nos blogs da cidade. Conversaram sobre a possibilidade de puxarem um debate público sobre o tema, tentando evitar que mais famílias fossem desrespeitadas por essa prática, chamada por Maristela de “sem noção, irresponsável”. E continua o relato: “Hoje, quando a Lara, filha da Mari, nos deixou, mais uma vez os absurdos se repetiram em blogs que se dizem jornalísticos e nas timelines das redes sociais… Meus amigos, chega disso! Respeitem a dor alheia, seja de quem for! Não chegaremos a lugar nenhum, como sociedade, se não conseguirmos nos colocar no lugar do outro. Chega de publicar essas fotos dolorosas. Chega de compartilhar essas imagens. Isso NÃO é liberdade de expressão, isso NÃO é informação. Isso é desrespeito e falta de humanidade. Mas, aproveitando a solidariedade que aflorou entre os colegas jornalistas, peço algo mais: uma reflexão ética sobre nossas práticas. Uma mudança real”.
A jornalista Andrea Brito também deu seu relato a respeito do assunto. “Suicídios NUNCA deveriam ser noticiados. Estudos mostram que, de alguma forma acabam ‘encorajando’ outros a praticarem o ato. Fico pensando se valeu a pena conquistarmos todos esses avanços tecnológicos. Algumas criaturas parecem estar mais embrutecidas que na idade das cavernas. Me pergunto se não passa pela cabeça de um blogueiro que aquela imagem vai ficar na blogosfera. E cada vez que algum familiar olhar vai reviver toda a dor e de forma mais cruel”, opina.
Hipocrisia?
A notícia chegou a outros lugares do Brasil. A jornalista Alice Queiroz, de Minas Gerais, argumenta, no entanto, que há uma hipocrisia no movimento que vem sendo criado. “A ética no jornalismo e o respeito às famílias de vítimas, além do bom senso, devem ser sempre respeitados. O movimento que vem sendo divulgado em grupos de jornalistas passa sim por um ponto muito importante, mas esbarra na hipocrisia quando pomos as coisas em perspectiva. Se indignar quando uma colega de trabalho é tratada de forma ‘irresponsável’ é ótimo, mas apontar o dedo para aqueles que repetem coisas que a grande maioria também fez, mesmo que em níveis diferentes, tem de ser debatida. Não basta se indignar quando colegas de profissão, ou amigos próximos são expostos, isso é hipocrisia e egoísmo. Lutar pelo ‘bom jornalismo’ passa pela preocupação com a integridade daqueles que não estão em nosso círculo, afinal, o exercício da profissão é para o bem comum e não particular. Da mesma forma, bradar que apenas blogueiros expuseram a moça e sua família em luto, ecoa um apego com o passado, denegrindo e desmerecendo produtores de conteúdo, e não condiz com a realidade onde blogs disputam em pé de igualdade com veículos tradicionais pelo mercado e atenção do público.”
Sandra Viana, jornalista, segue na mesma linha de opinião. “Que, então, a partir desta lista, que sirva de alerta para que todos tenham mais discernimento, sensibilidade e noção ao tratar de temas delicados, envolvendo colegas ou não”.