APÓS 86 ANOS

Poemas desconhecidos de Carlos Drummond de Andrade são revelados

Versos quase inéditos são atribuídos à fase ”penumbrista” do gênio

Carlos Drumond de Andrade

Na revista Raça que circulou em junho de 1929, a população de São Carlos, no interior de São Paulo, leu três poemas de Carlos Drummond de Andrade, que ainda não era muito conhecido. E foi isso. Durante 86 anos, os textos ficaram arquivados.

Poemas considerados ”ruinzinhos” não fazem jus à obra de Drummond, mas servem para remapear a trajetória do itabirano desde a juventude (Acervo do Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa/Reprodução)
Poemas considerados ”ruinzinhos” não fazem jus à obra de Drummond, mas servem para remapear a trajetória do itabirano desde a juventude.
Mayra de Souza Fontebasso decidiu estudar, para seu projeto de iniciação científica na UFSCar, o conteúdo literário da publicação que circulou entre 1927 e 1934 e se deparou com aqueles versos “meio estranhos”. Ela consultou seu orientador, o professor Wilton José Marques.
Fã de Drummond, ele também achou aquilo estranho e foi consultar a bibliografia acerca do poeta e seu acervo. Não encontrando nenhum registro, recorreu a Antonio Carlos Secchin, organizador de 25 poemas da triste alegria, que apresentava um Drummond iniciante e diferente do que ele se tornaria — e bastante parecido com o poeta da Raça.
“Creio que são inéditos e da fase ‘penumbrista’ de Drummond”, confirmou Secchin à reportagem. “Acredito que eles tenham sido escritos no início dos anos 1920 e que ele tenha mandado os poemas para o Mário de Andrade, que então teria encaminhado para São Carlos”, completa Marques.
Mayra conta que ficou intrigada com os textos, bem diferentes dos poemas que se tem conhecimento. “Temos visto Drummond como um escritor de temas como a condição humana em um mundo desajustado”, conta. Esses poemas, porém, ela diz, retratam a “juventude do poeta”.
Drummond deu os seguintes títulos os textos: O poema das mãos soluçantes, que se erguem num desejo e numa súplica; O poema das mãos que não terão outras mãos numa tarde fria de Junho; e O poema dos olhos que adormeceram vendo a beleza da terra.
“Eles são bem ruinzinhos, mas a descoberta foi importante porque ninguém se preocupou em estudar como Drummond se tornou moderno, quais foram suas influências”, diz o professor.
Para Armando Freitas Filho, discípulo de Drummond, esta foi uma “descoberta preciosa”. Humberto Werneck, que prepara biografia do poeta, diz: “Grande feito da pesquisadora. Já o poeta, se estivesse vivo já estaria morto…” Marques pensa que o Drummond não teria gostado de ver os versos publicados.
O crítico Silviano Santiago acredita que teremos esse tipo de “descoberta miúda ad aeternum”. “Um dia ainda chegaremos — para lembrar Michel Foucault — ao rol de roupa suja que ele escreveu quando mandou o saco para a lavanderia da esquina. Com alguma dose de ironia, direi que será o ‘poema sujo’ a que Manuel Bandeira se referiu”, diz.
Santiago lembra que o primeiro e mais exaustivo levantamento de poemas de Drummond, escritos e publicados antes de 1930, foi feito por John Gledson em Poesia e poética de Carlos Drummond, em 1981. “No apêndice à análise de John Gledson, ficou claro que desde 1921, Drummond lançava seus petardos poéticos para todos os lados, indiscriminadamente. No bom linguajar de hoje era um jovem poeta porra louca.”
Confira os poemas:
• O poema das mãos soluçantes, que se erguem num desejo e numa súplica
Como são belas as tuas mãos, como são belas as tuas mãos pálidas como uma canção em surdina…
As tuas mãos dançam a dança incerta do desejo, e afagam, e beijam e apertam…
As tuas mãos procuram no alto a lâmpada invisível, a lâmpada que nunca será tocada…
As tuas mãos procuram no alto a flor silenciosa, a flor que nunca será colhida…
Como é bela a volúpia inútil de teus dedos…
• O poema das mãos que não terão outras mãos numa tarde fria de Junho
Pobres das mãos viúvas, mãos compridas e desoladas, que procuram em vão, desejam em vão…
Há em torno a elas a tristeza infinita de qualquer coisa que se perdeu para sempre…
E as mãos viúvas se encarquilham, trêmulas, cheias de rugas, vazias de outras mãos…
E as mãos viúvas tateiam, insones, as friorentas mãos viúvas…
• O poema dos olhos que adormeceram vendo a beleza da terra
Tudo eles viram, viram as águas quietas e suaves, as águas inquietas e sombrias…
E viram a alma das paisagens sob o outono, o voo dos pássaros vadios, e os crepúsculos sanguejantes…
E viram toda a beleza da terra, esparsa nas flores e nas nuvens, nos recantos de sombra e no dorso voluptuoso das colinas…
E a beleza da terra se fechou sobre eles e adormeceram vendo a beleza da terra…
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