Não adiantou explicar. Os herdeiros do escritor Antoine de Saint-Exupéry não entenderam muito bem essa história de “literatura de cordel” e, por isso, negaram com veemência uma adaptação de um dos livros mais vendidos do mundo. A recusa frustrou o pernambucano Josué Limeira, cuja obra de estreia foi obrigada a ficar de molho. Agora, 70 anos após a morte de Exupéry e a entrada da produção literária em domínio público, o projeto vira realidade.
Na remixagem do clássico, Josué narra a história no formato de sextilhas e conta com dezenas de ilustrações de Vladimir Barros, cujos traços ficam entre a xilogravura e a estética armorial. A forma e conteúdo do texto, aliados aos desenhos, inserem a dupla de autores em um panteão de cordelistas e artistas gráficos dedicados a misturar o enredo de obras universais a características típicas do Nordeste.
Pelo chapéu de couro com estrelas bordadas, não resta dúvidas: o Pequeno Príncipe é um “pequeno vaqueiro”. Em certo ponto da ficção, a asa branca cantada por Luiz Gonzaga é o pássaro responsável por fazê-lo voar. O rei de Exupéry vira o Rei do Maracatu. O Homem Vaidoso é encarnado pelo Homem da Meia-Noite, figura típica do carnaval pernambucano. “Li o livro na infância, aos 10, 11 anos, e nunca esqueci as frases de efeito, os filmes que adaptam o enredo. Decidi fazer homenagem e misturar a filosofia de Exupéry com a nordestina, um casamento matuto”.
Para a pesquisadora de literatura de cordel Shirley Ferreira, esse tipo de adaptação vai na contramão da tradição dos poetas cordelistas: “O comum é criar a história dentro do regionalismo, com acontecimentos recentes, na oralidade e escrita. Não é todo dia que um autor se dispõe a pegar um clássico e transformar em cordel. A proposta preserva o encantamento da ficção, a partir de novas maneiras de contá-la e enaltece o cordel”.
Desde os primórdios do gênero literário, explica o estudioso e cordelista Meca Moreno, é frequente o diálogo com cinema, teatro, mitos religiosos. O cordel não só adapta e é adaptado como bebe na fonte da tradição. “Esse novo movimento, de transformar em cordel obras literárias, sobretudo no formato de livro ilustrado, é muito positivo. Aproxima de crianças, adolescentes e divulga a linguagem para o público em geral”, conclui Meca Moreno.
Virou cordel
Lampião & Lancelote
de Fernando Vilela
Cosac Naify, 51 págs., R$ 57
Na obra, o inusitado: um cavaleiro medieval desafia um cangaceiro. O embate é, sobretudo, cultural. Nas linguagens do cordel e da novela de cavalaria, Lampião e Lancelote (de O rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, de Thomas Malory) disputam quem faz o melhor repente, cada um com suas referências. A obra chegou a ser adaptada ao teatro. (“De um velho mandacaru/ Tirou do miolo um cordel/ Invocou o Santo Nas/ Que movimentou o céu/ Abriu um oco no centro/ E pôs todo mundo dentro/ Destas folhas de papel”)
A megera domada em cordel
de Marco Haurélio
Alexandria, 48 págs., R$ 25
Famosa comédia de William Shakespeare é adaptada para cordel, repleta de bom humor. A história de Petrúquio e Catarina é transportada numa poesia leve e engraçada, misturando o Nordeste do Brasil com a Itália renascentista.
Alice no País das Maravilhas em cordel
de João Gomes de Sá
Alexandria, 32 páginas, R$ 37
O clássico de Lewis Carroll é fundido com textos de cordelistas, como Viagem a São Saruê, de Manoel Camilo dos Santos. Na versão do poeta alagoano João Gomes de Sá, o folclore nordestino está presente. Em um trecho, a protagonista cai numa cacimba e encontra um gato repentista, inspirado no cantador paraibano Sebastião Marinho. O Chapeleiro Louco, por exemplo, tem “o mesmo céu estrelado” do chapéu de Lampião.
O corcunda de Notre Dame/cordel
de João Gomes de Sá
Alexandria, 48 páginas, R$ 25
Ao invés de Paris, ele circula pela cidade nordestina de Santana de Cajazeira. A história guarda semelhanças com a original, de Victor Hugo, mas se adapta à cultura do Nordeste, com a troca de nomes de personagens, costumes e acontecimentos.