“Me deixem cantar até o fim”, exige Elza Soares, de 78 anos, na faixa-título de A mulher do fim do mundo, seu primeiro álbum de inéditas em 55 anos de carreira. A artista, que empresta sua personalidade guerreira à canção de Romulo Fróes e Alice Coutinho, explica: “As dores, as coisas que acontecem na vida te fazem pedir pelo amor de Deus que te deixem cantar”.
Latente nas faixas do álbum, a dor brota da história de Elza. Casada à força pelo pai aos 12 e mãe pela primeira vez aos 13, ela viu cinco dos sete filhos morrerem. O adeus mais recente ocorreu em julho, quando Gerson, que ela deu à luz aos 19, não sobreviveu a uma infecção urinária. “Música é sedativo da alma”, pontua a artista. Por isso, A mulher do fim do mundo carrega a voz desafiada pela vida, porém vitoriosa na superação. “Quem canta é a Elza do agora, mas que vê as coisas deixadas para trás”, resume ela.
Como fazia antes da fama, nos anos 1950, quando descia o morro para se apresentar em programas de rádio cariocas, Elza Soares grita por quem não consegue se fazer ouvir. Nas 11 faixas assinadas por destaques da cena musical contemporânea de São Paulo, a veterana trata de violência doméstica, discriminação por gênero e trabalho infantil.
“Alguns problemas permanecem, como a homofobia, a mulher que sofre abuso em casa e não denuncia. Essas coisas acontecem a todo instante, não têm época”, alerta. Elza acompanha o noticiário com cada vez menos esperança: “Temos que continuar sabendo dos fatos, que são terríveis. Dói muito, mas não se pode negar a realidade cruel. Ela se faz presente”.
AGRESSÃO
Materialização da reviravolta feminina, a canção de Douglas Germano traz Elza como a verdadeira Maria da Vila Matilde. “Identifiquei-me muito com a letra na primeira vez que a ouvi. Fala muito perto de mim”, revela. A cantora diz ter sido vítima de agressões físicas e psicológicas, assim como “mulheres próximas”. O recado é contra a omissão. “Caladas, permitimos coisas horríveis. A mulher tem que gritar, denunciar para que isso não se repita várias vezes e com as outras”, alerta.
Benedita, outra joia no repertório de inéditas, descreve o desafio diário de uma travesti traficante que “leva o cartucho na teta” e “abre a navalha na boca”. “É um retrato”, define Elza, orgulhosa do dueto com o autor da canção, Celso Sim. “Uma letra que trata do crack e da mulher transexual é uma letra forte, violenta”, ressalta.
Tanto as temáticas quanto a sonoridade experimental, com guitarras rasgadas que cortam o samba-breque por todo o álbum, resultam da concepção de Guilherme Kastrup. O percussionista e produtor carioca desenhou a ideia do primeiro disco completamente escrito para Elza depois de trabalhar com ela em um show, há quatro anos. Guilherme selecionou os compositores paulistanos que representam o núcleo criativo da geração que vem redesenhando a MPB a partir de São Paulo.
Elza canta inéditas de Kiko Dinucci e Marcelo Cabral, ao gosto de seu vozeirão, com a mesma intimidade com que repaginava Lupicínio Rodrigues e Noel Rosa. O dueto com Rodrigo Campos em Firmeza?! ressuscita a leveza de seus diálogos cantados com Miltinho nos anos 1960. Desbocada, Pra fuder assume em estúdio o erotismo e a liberdade sensual – velhos conhecidos de quem já a viu no palco.
Mas é Solto, a favorita de Elza, que traz de volta a mulher que faz questão de seguir amando. “Sou apaixonada por essa música romântica, com arranjos de cordas tão lindos”, comenta, ao se referir à parceria de Clima e Marcelo Cabral.
PRECONCEITO RACIAL
A discussão sobre o racismo, tema da cantora desde os anos 1970, desta vez ficou reservada para a turnê. Até agora, foram duas apresentações na capital paulista, em que Elza se juntou a quarteto de cordas, à banda Bixiga 70 e aos músicos que trabalharam no CD: Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Felipe Roseno, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Guilherme Kastrup.
Ouça Solto e Contigo, faixas que encerram o disco A mulher do futuro, de Elza Soares:
“Nos shows, a gente fala muito abertamente sobre racismo. Denuncio, grito muito”, ela afirma. Vestida de “metáfora do fim do mundo” pela diretora de arte de Anna Turra, Elza revive, em arranjos experimentais, canções antigas de seu repertório que denunciam o preconceito racial no Brasil. “Defendo tudo isso com minhas palavras e com A carne negra”, explica, referindo-se à parceria de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti.
“A carne mais barata do mercado/ É a carne negra”, diz a letra. Marcante na carreira de Elza, o registro de 2002 ganha nova versão: “A carne mais barata do mercado/ Foi a carne negra”. Porém, o verbo no passado não significa otimismo.
“Atualmente, temos grandes negros no meio artístico. Mas ainda são tão poucos que a gente nem chega a ter contato direto com eles”, adverte. “O que será das crianças negras que nascem agora? Que identificação vão encontrar? Não há muitas referências na mídia sobre a realidade delas”, denuncia a cantora.
Apesar de tudo, Elza nunca entrega os pontos. “Tenho em mim a vontade de não parar, esse gás que é meu mesmo”, diz. Questionada sobre o equilíbrio entre suas quase oito décadas de vida e a constante busca por novidades, ela recorre a seu lema pessoal que batizou o documentário My name is now, de Elizabete Martins Campos, lançado em 2014. “Boto o passado todo num cantinho, guardadinho em mim, mas sabendo que o now está aqui. Ontem já foi, amanhã não sei. Então, tem que ser agora”, conclui.
Quando Elza Soares diz “só quero cantar até o fim”, não se trata de pedido, mas de exigência. Que se cumpra, então.