Mil e oitenta fotos compõem o cenário do novo espetáculo do Grupo Corpo, Dança sinfônica. Não há uma só imagem de um bailarino dançando. O que estará expresso ali – e que dificilmente será visto pelo público, a não ser que se chegue bem perto – são registros amadores de viagens e encontros dos integrantes da companhia ao longo de sua trajetória. Algo pessoal, que passa ao largo do espectador que assiste aos espetáculos do grupo. Antes de esta multidão anônima colorida ganhar a cena, o branco vai dominar o palco. Cenário, figurinos e até mesmo o piso, todos brancos, preparam o olhar para Suíte branca.
Lançados simultaneamente, Suíte branca e Dança sinfônica, que estreiam na próxima quarta, no Palácio das Artes, comemoram tanto a história de 40 anos do Corpo quanto mostram que ainda há muito por vir. Uma coreografia é como uma folha em branco, o início de uma nova etapa. A outra tem um cunho de celebração, corroborado por cortinas vermelhas que servem como moldura.
Suíte branca marca a estreia de Cassi Abranches, ex-bailarina do grupo, como coreógrafa do Corpo. A trilha sonora traz outro estreante em dança, Samuel Rosa, do Skank. Já Dança sinfônica reúne nomes consagrados: o coreógrafo Rodrigo Pederneiras, o compositor Marco Antônio Guimarães, o grupo Uakti e a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
A passagem do tempo é tema caro ao Corpo e é o que o lançamento de dois espetáculos, algo muito raro numa trajetória que soma 38 montagens, procura ratificar. Morto em 12 de junho, o letrista Fernando Brant é o homenageado neste programa duplo. “Tudo começa com ele”, relembra o diretor artístico Paulo Pederneiras.
Pois foi em 1975 que um grupo que nunca havia se apresentado num palco encontrou-se com Brant. Este os levou a Milton Nascimento. Depois veio o coreógrafo Oscar Araiz. Maria Maria, o resultado desses encontros, estreou no Palácio das Artes em 1º de abril de 1976. E a magia aconteceu.
CABEÇA Paulo, o segundo dos seis irmãos Pederneiras, é o cabeça de uma empreitada que começou de maneira caseira. Literalmente. Foi ele quem convenceu os pais, Manoel de Carvalho Barbosa e Isabel Pederneiras Barbosa, a ceder a casa onde viviam com a prole e transformá-la na sede de um grupo de dança.
Era a casa de número 66 na Rua Barão de Lucena, na Serra – local que não existe mais, pois seu terreno, somado à área contígua, vai dar espaço a um supermercado. Foram apenas alguns anos ali. O bravo casal Pederneiras Barbosa não se importou em vender o local, morar de aluguel. Com o dinheiro da venda do imóvel foi comprado o terreno no Mangabeiras onde está a sede do grupo desde então.
Uma coisa puxa a outra e logo no início todos os filhos de Manoel e Isabel – José Luiz, Paulo, Pedro, Rodrigo, Míriam e Mariza – envolveram-se com dança. No palco. Mas, à medida que o tempo passou, cada um buscou seu espaço.
A Rodrigo coube dar a marca ao Corpo, criar uma escritura coreográfica única e original. José Luiz abandonou a medicina, encantou-se pelas imagens e, mesmo vivendo no Rio de Janeiro, mantém o elo com os irmãos, assinando todo o material fotográfico do grupo. Pedro tornou-se diretor técnico; Míriam, ao abandonar as sapatilhas, criou a ONG Corpo Cidadão; e Mariza, depois de dançar por muitos anos, vive hoje na Alemanha.
E há os membros que completam a grande família. A agregada mais notória é Freusa Zechmeister, a arquiteta consagrada que se torna figurinista única e exclusivamente para o Corpo. A maior parte dos ex-bailarinos continua conectado com o grupo. E uma segunda geração de Pederneiras também está na ativa, mas longe dos holofotes: Gabriel, filho de Rodrigo, e André, filho de Míriam, atuam na técnica. Gabriel assumiu a coordenação do setor e divide com o tio Paulo a iluminação das duas novas montagens.
É uma história feita de muita gente, como as páginas a seguir vão mostrar. E uma história que também está sempre em evolução, embora muitas vezes o Corpo tenha atingido resultados que sugeriam seu ápice, como apontou o crítico Marcello Castilho Avellar, em texto publicado no Estado de Minas em 26 de junho de 1992, quando da estreia de 21, um marco na história da companhia:
“Vai ficar – como aconteceu nos últimos anos – a angustiante sensação de que desta vez o Corpo terá ido longe demais, e não conseguirá criar nada de novo ou surpreendente na próxima temporada. E a angústia será compensada no próximo inverno ou primavera, quando descobriremos com prazer que ainda haverá pelo menos uma solução nova, inédita, criativa, estonteante, diferente, deslumbrante, original. O Corpo, nesta trajetória, assume a essência de todos os ritos: simbolizar a eternidade da existência, a permanente recriação do universo – em última instância, o elemento essencial da própria arte”.