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Liderança feminina no bumba-meu-boi

Venha conhecer as mulheres atuantes nos bastidores dos grupos de bumba-meu-boi.

Nadir é um exemplo de mulher neste âmbito, ela comanda mais de 100 brincantes. (Foto: Charles Eduardo)

OSão João do Maranhão já começou. Os batalhões já estão nas ruas com suas indumentárias, vestimentas, sonoridades rítmicas, seus brincantes, cada grupo, cada sotaque com suas especificidades. Mas nesta reportagem, eu não vou falar dos grupos de bumba-meu-boi, mas quem atua nos bastidores dele.

Vou falar de mulheres que vão da parte financeira, à logística, administração, controles, agenda, até chegar a hora de botar o boi na rua, literalmente. Estou falando das mulheres que comandam os bois, mesmo aquelas que não estão à frente do boi, no papel, mas desempenham papel preponderante para que tudo saia perfeito.

E quem pensa que o trabalho é só mostrar o boi para o público, engana-se. O trabalho começa muito antes, muito mesmo. O trabalho começa quando elas precisam provar que são competentes quanto os outros, que podem tanto quanto os outros, em um ambiente que até então era predominantemente preenchido por homens.

Conversei com algumas (elas são muitas) dessas mulheres, e para além do talento delas, chama a atenção a batalha diária para ocupar o seu lugar ao sol.

“Comandar o boi sendo mulher é todos os dias formar trincheira em sua defesa, em defesa da cultura, em defesa do próprio grupo cultural porque tem sempre alguém querendo mostrar que tem mais força que você, né? É, digamos assim, uma luta travada, silenciosamente. Porque os grupos que tem homens na frente acham que as mulheres tem que ir ‘pro’ rabo da fila, então tudo que eles puderem fazer ‘pra’ atrapalhar é feito, na calada da noite, na calada da madrugada. Então, assim, de forma sutil nas palavras, quando a gente fica sabendo, a gente se pinta como índio, se pinta para a guerra”, disse Nadir Cruz, presidente do Boi da Floresta de Mestre Apolônio, produtora cultural e pesquisadora.

O Boi da Floresta completa 50 anos este ano, contribuindo não só para a cultura, mas para o social. “É uma peça importante dentro dessa transformação social, principalmente aqui no bairro da Liberdade, o quilombo urbano. Conduzir  o Boi da Floresta, que é um batalhão já conhecido, reconhecido e que as pessoas esperam o melhor dele, é uma responsabilidade muito grande. E nesse momento essa responsabilidade fica ampliada porque estamos voltando após um momento todo especial, né?”, lembra Nadir.

A produtora cultural está à frente do Boi da Floresta desde 2015, depois da morte de seu companheiro, Apolônio Melônio, aos 96 anos. Nadir Cruz comanda mais de 100 brincantes. Ao chegar no grupo, com 13 anos, começou desenhando, bordando e costurando as indumentárias dos brincantes e o couro do boi, mas aos poucos passou a organizar, modernizar e profissionalizar o boi da Floresta.

Foi no Bumba Meu Boi que nasceu sua família. Da aproximação de Nadir com o Mestre Apolônio, veio a primeira filha dela e a 23ª dele. Ela tinha 20 anos e o mestre, 60. Foram 37 anos juntos. Desde que o mestre faleceu, Nadir tem uma grande responsabilidade, a de manter o legado e de cuidar das vidas das pessoas que compõem o boi.

O toque feminino no boi de Axixá

Comandando o batalhão do boi da região do Munin desde que o pai, seu Francisco Naiva, deixou este plano, Leila Naiva, para falar de uma expressão do boi, é uma verdadeira índia guerreira do Boi de Axixá. São mais de 45 anos de contribuição à cultura maranhense.

O Boi de Axixá foi fundado em 1º de janeiro de 1959, por Francisco Naiva, não por pagamento de promessa, mas por amor à brincadeira, à cultura popular. Era composto pelos personagens soldados, caboclos de flecha, índios e campeadores.

As mulheres eram proibidas de brincar. Mais de 60 anos depois, o grupo é liderado por uma mulher, a filha dele, um legado incalculável. “Nāo é fácil comandar um batalhão, pois enfrentamos vários obstáculos, mas com a ajuda de Deus vencemos um a um”, disse Leila.

De pai para filha

Cláudia Regina Avelar Santos é filha do saudoso mestre Leonardo, que comandou o Boi e o Tambor da Liberdade por mais de 40 anos. Regina, Regina de Leonardo ou Regina Avelar, a quinta filha de Leonardo, a mais nova dos 5, disse que nasceu no mesmo ano em que ele casou com outra mulher.

Quando ela tinha 7 anos foi morar com o pai na sede do boi. “Graças a Deus que eu vim pra cá e já via mais ou menos como era essa organização na casa, o trabalho que era feito, as toadas que eram feitas. Então eu vi aquilo tudo e fui aprendendo. Meu pai era de pouco estudo, porque tinha que trabalhar, mas me botou pra estudar”, contou Regina.

Cláudia Regina Avelar, líder de boi referência no bairro da Liberdade. (Foto: Arquivo pessoal)

Ela confessa que estudou muito porque via como uma fuga para não ter que tomar de conta do boi, foi estudar no Rio de Janeiro, voltou para fundar uma empresa. mas o pai foi adoecendo em função do trabalho pesado que fazia como estivador. Com a idade, as articulações foram ficando prejudicadas.

O amigo, Chico Coimbra (também já falecido). “Quando foi no ano de dois mil, já depois que eu voltei do Rio de Janeiro, vim ter uma empresa. Um dia, durante a morte do boi, ele estava muito triste num canto aí ele falou pra mim ‘ô pequena vamos tocar esse boi comigo’, e eu falava não quero isso aí é uma relação muito difícil. Eu tive que estudar bastante pra que eu me livrasse desse cenário porque era muito desgastante. São relações muito complicadas, com muita inveja, muita bebida, então eu não estava disposta a fazer nada disso. Aí no dia da culminância da festa eu perguntei se se ele queria pra eu participar da reunião de balanço da temporada. Aí ele ficou contente, mas quando passou uma semana que eles se reuniram, o povo tudo tava armado, pra me rejeitar. Eles não me queriam, só 5 pessoas da minha família me queriam. Aí foi que decidiram que o Chico tomava de conta do boi e eu do tambor”, contou.

Não foi fácil pra ela, ela foi rejeitada, excluída porque achavam que ela queria tomar de conta do boi para se dar bem.

“E aí no ano de 2004 Leonardo partiu. A primeira coisa que eu ouvi foi, ‘graças a Deus a filha de Leonardo está dentro do grupo. Porque Leonardo partiu, agora seria um outro problema pra gente’. Você está entendendo? E aí tudo que eu aprendi lá fora, o que eu estudei, eu trouxe pra dentro desse do boi”, disse.

Com o boi organizado administrativamente, catalogado, era hora de organizar financeiramente também. Anos depois, Chico Coimbra também faleceu, apesar do momento frágil, o olhar para dentro do boi mudou.

“E enquanto mulher na liderança ficou muito mais fácil, eu diria sempre falo que quando  mulher é uma liderança você atrai outras mulheres, você tem outros braços né? As pessoas vem, e aí vai se construindo essa história, se mantendo, resistindo. Costumo dizer que o sotaque de zabumba é um sotaque que resiste né? Vem resistindo ao tempo ao preconceito. Assim que eu me vejo dentro desse cenário do bumba meu boi. Enquanto mulher preta, eu vejo que a liderança feminina é uma liderança acolhedora, ela tem um olhar de mãe, né? Todos são filhos. Com suas qualidades, defeitos, mas são filhos. É assim que eu abraço todo mundo”, disse.

O legado do boi de Leonardo é eterno. Além da responsabilidade de tomar de conta de um boi referência no bairro da Liberdade, tem toda a história das vidas que dependem do trabalho do grupo. “O boi é do ano de 1956. O bairro é centenário, então a construção desse bairro o boi contribuiu. E o boi está aqui resistindo. É graças à comunidade aonde estamos que o boi resiste até hoje”.

De pai para filha II

A Juliana Fonseca é a presidente do Boi Oriente, em atividade  desde 1990, fundado pelo senhor Benedito Santos, pai de Juliana. Hoje sediado na Vila Passos, o grupo surgiu, através de uma promessa de conflito por terras no povoado vertente  em São João Batista. Juliana fez uma promessa para São João, e o boi que antes se chama Raízes passou-se a chamar Oriente, sotaque da baixada.

“É muita responsabilidade com o boi, para com os componentes e família dos mesmo, e sim, é um desafio todos os dias pelo fato de ser mulher e as responsabilidades aumentarem, pelo  fato de trabalhar ao longo do ano, para levar o melhor do nosso grupo ao público”, disse.

Brilho da Boa Hora

O bumba meu boi Brilho da Boa Hora, de Boa Hora dos Pachecos, em  Presidente Juscelino, é presidido pelo senhor José Luiz Mendes Pacheco, mas dona Maria de Lourdes Machado há 16 anos, é o braço direito do presidente.

Bordar, costurar, dar conselho, fazer contrato, enfim, fazer de tudo um pouco. Assim é a vida de Maria de Lourdes, 71 anos de vida e há 30 envolvida com a cultura do bumba meu boi. Começou como a última escala da diretoria do boi de Presidente Juscelino, até chegar a comandar o mesmo por 14 anos.

Depois, passou a fazer parte do Brilho da Boa Hora. “Lidar com pessoas é muito difícil, mas nunca tive problemas, porque respeito, dou carinho, graças a Deus. A cada dia fui conquistando, mostrando meu trabalho, minha liderança. Hoje eu tenho amigos que fiz através do bumba meu boi e  o respeito de muita pessoas. Comandar ou ajudar é o que eu faço, com amor pela cultura.”

Com mãos de ferro

Fundadora do Boi de Nina Rodrigues (região do Munim) em 1990, Concita Braga, além de fundadora, é presidente, ama e compositora de toadas. Em entrevista, contou que nasceu no Piauí, mas que veio para o Maranhão com 5 anos. A família de seus pais vieram de Rosário e sempre ouviu  histórias de que os bois do sotaque de Orquestra nasceram na região, que o boi de Axixá se “escondia” lá na casa dos seus avós maternos antes de “morrer”.

Concita Braga, fundadora do Boi de Nina Rodrigues. (Foto: Arquivo Pessoal)

Conhecida pelo “pulso firme”, Concita Braga é uma das personalidades mais fortes e respeitadas na cultura popular maranhense, tendo recebido várias honrarias pelo seu trabalho à frente do boi, que conta com mais 100 integrantes e é conhecido por ter as índias mais belas.

O legado de Humberto de Maracanã

Sob o comando da viúva Maria José Soaresdos e dos filhos e herdeiros de arte, Ribinha e Humberto Filho, o Boi de  Maracanã, vive para manter o legado deixado por  Humberto de Maracanã, um dos maiores mestres da cultura popular do Maranhão, e fazer o boi do jeito que ele deixou, ou ainda melhor.

“O bom é que a gente conseguiu conviver com ele e aprender a fazer como ele. Mas não é fácil por ser mulher, mulher negra, e enfrentando resistência dos homens, mas eu consigo tirar isso de letra. O batalhão em nenhum momento quer que eu deixe de cuidar da forma que eu cuido. Isso é bom, mas não é fácil. Os meninos cantam, e eu cuido do boi, da administração e é muito bom ser reconhecida por isso”, disse Maria José.

Viúva de Humberto, ela já era vice-presidente do grupo que era presidido por Humberto desde 1997. Em 2006 ela assumiu a presidência. Desde então, é sob o comando dela que  300 integrantes completam o ciclo do boi. O seu cuidado é desde a ponta até a culminância do boi. “É um trabalho grande, onde a gente faz de tudo para receber o legado e manter a qualidade do boi, como Humberto gostava”, disse.

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