RELIGIOSIDADE

O sagrado como missão de vida

Líder espiritual da tradicional Casa Fanti Ashanti, Mãe Kabeca de Xangô que dá continuidade ao legado de Pai Euclides Talabyan, comemora seus 69 anos de vida.

Em 2010, Mãe Kabeca fez parte da delegação da Casa Fanti Ashanti que acompanhou Pai Euclides Talabyan ao Benin (África Ocidental) (Foto: Márcio Vasconcelos)

A conhecida Yalaxé da tradicional Casa Fanti Ashanti, Mãe Kabeca de Xangô, completa 69 anos, nesse sábado (28).  Com uma vida dedicada ao sagrado, ela começou ainda criança a sua trajetória nas religiões afro-brasileiras.

Por conta da manifestação de seus dons espirituais, seus pais biológicos compartilharam os cuidados dela com Euclides Menezes, o Talabyan, fundador do terreiro, e um dos mais respeitados babalorixás do Brasil. Com ele, Mãe Kabeca aprendeu as coisas do mundo do espiritual e foi preparada para assumir a direção da Casa.

Em 2010, Mãe Kabeca fez parte da delegação da Casa Fanti Ashanti que acompanhou Pai Euclides Talabyan ao Benin (África Ocidental), por meio do Projeto Pedra da Memória, idealizado pela artista e pesquisadora Renata Amaral, no âmbito do Prêmio Interações Estéticas da Funarte.

Juntamente com pesquisadores, eles visitaram as cidades de Cotonou, Abomey, Ketou, Porto Novo, Ouidah, Allada, Pobe e Sakete e presenciaram diversas cerimônias e realizaram diálogos com líderes locais, identificando semelhanças e particularidades nessas experiências ancestrais.

Quando do falecimento do Talabyan, em 17 de agosto de 2015, Mãe Kabeca se tornou a líder espiritual da Tenda São Jorge Jardim de Oeira (Casa Fanti Ashanti). Uma de suas grandes responsabilidade é dar continuidade a este legado, que tem sua origem no Terreiro do Egito, fundado pela africana Massinokou Alapong, em 1864. Hoje, mais de 200 casas espalhadas pelo país descendem da Casa Fanti Ashanti.

Terreiro de mina e candomblé de Nação Jeje-nagô, fundado em 1954, a Casa Fanti Ashanti também é um centro cultural. Ali tem tambor de crioula, tambor de taboca, festividades do Divino Espirito Santo, já teve Bumba Boi entre outros.

A Mãe Kabeca além de dançar, aprendeu a manusear diversos instrumentos de percussão utilizados nos rituais e nas festas populares, como tambor, cabaça, ferro (gan), agogô etc. Por conta de sua habilidade, realiza oficinas em diversos lugares do país, principalmente, de tambor de crioula e toque de caixa.

Filha do lavrador e barbeiro Tomaz de Aquino do Santos e Hermínia Mesquita do Santos, lavradora e parteira, a Mãe Kabeca ou Izabel Mesquita dos Santos, nasceu na zona rural de São Luís, na Vila Maranhão, em Limoeiro.

Cantinho que até hoje desfruta. Ela teve quatro filhos biológicos, Mailson Jorge, Maisa Conceição, Neuisa de Fátima e Marília de Jesus, esta última é falecida. Faz questão de dizer que tem uma filha do Coração, Ananelis da Conceição. Vive rodeados pelos netinhos Marília, José Ricardo e Marina.

Com uma vida dedicada ao sagrado, ela começou ainda criança a sua trajetória nas religiões afro-brasileiras. (Foto: Márcio Vasconcelos)

Além dos netos do coração, Wellington, Willame e Washigton, que já lhe deram cinco bisnetos. Acolhedora e firme, Mãe Kabeca tem enfrentado os desafios do cotidiano, do racismo religioso, buscando a união, o respeito à natureza e ao sagrado.

Cinco perguntas para Mãe Kabeca

Quando a senhora descobriu que sua missão era levar o conhecimento da religião de matriz africana como ensinamentos?

Não sei dizer exatamente quando isso aconteceu porque já me criei dentro da religião. Comecei aos sete, em 1960. Criada por Pai Euclides, fui aprendendo. A gente tem de aprender para pode ensinar, não é mesmo? Aos 13 anos fui escolhida para ser Mãe Pequena da casa (pessoa que além de outras atribuições, substitui o líder especial em caso de ausência e é a sucessora na liderança da casa). A partir me dediquei muito mais e passei também a transmitir conhecimentos.

Aos 13 anos fui escolhida para ser Mãe Pequena da casa (pessoa que além de outras atribuições, substitui o líder especial em caso de ausência e é a sucessora na liderança da casa).

Pai Euclides foi seu grande Mestre. Como foi ser preparada por ele para dar continuidade a seu legado. Houve alguma resistência pelo fato da senhora ser mulher para que isso ocorresse?

Ter sido preparada por ele foi uma grande honra. Para mim, ele foi um mestre, meu pai de criação, meu professor, meu babalorixá. Tive carinho, respeito e a sua dedicação para me dar todo aprendizado. Quanto à resistência em relação a ser mulher não. Eu era uma criança quando fui escolhida pelos orixás e voduns da Casa, então aceitei. Já meu pai, no início, era bastante preocupado, mas passou a me apoiar cada vez mais à medida que ele observou minha entrega à vida espiritual, compreendeu como é a vida no terreiro e viu minha saúde melhorando – antes eu tinha muitos problemas de saúde.

Durante toda essa vivência com Pai Euclides e seus filhos na Casa Fanti Ashanti, qual a maior experiência que mudou a sua vida?

Considero que foi a minha aceitação como Mãe Pequena pelos demais entes da Casa. Na época, tinham muitas pessoas experientes, idosas, e eu era uma criança. Mas quando o orixá me escolheu quebrou qualquer resistência, ninguém poderia ir contra. Para mim, isso foi uma dádiva de Olorum, dos orixás e voduns. Também destaco a nossa luta, a minha luta, a dedicação, de me responsabilizar pelos meus atos dentro e fora do terreiro. Ao ser escolhida, a pessoa tem de ter abnegação, respeito, amor pelos orixás, amor-próprio e amor pelas pessoas. Precisamos ter discernimento, equilíbrio e sabedoria, é isso que busco para tudo seja harmonizado na minha família espiritual e família biológica. Estar na Casa Fanti Ashanti é uma bênção! Agradeço por tudo à Xango, Orixalá, Oxum e todos os orixás e voduns, que me equilibram até o dia de hoje para que eu possa levar esse legado de Euclides Talabyan para frente, com muito respeito. Eu sou muito feliz aqui, a Casa está viva, tem renovação, apoio.

Como a senhora vê a questão da intolerância religiosa com relação aos cultos de matriz africana? E de que forma a casa tem trabalhado para essa desmistificação?

Falo não somente da Casa Fanti Ashanti, pois quem sofre com a intolerância religiosa é o Maranhão, o Brasil, o mundo, por conta desse racismo contra as religiões de matriz africana. Ficamos tristes. Mas, como zeladores e zeladoras de orixá, integrantes da religião, temos lutado muito contra o racismo. Neste momento, até se percebe que tem mais espaço para falar sobre isso, tem órgãos públicos demonstrando apoio, os terreiros e o movimento de religião de matriz africana estão unidos, se apoiando, buscando seus direitos. O racismo, a intolerância são doenças. As pessoas não estão dispostas a compreender nossa religião. A gente até hoje luta por liberdade. A gente merece ser respeitado e o nosso sagrado também. Temos de ter liberdade de exercer nossa missão como yalorixá, babalorixá, yawo, abian, como filho de santo; liberdade de usar nossas vestimentas, nosso fio de conta, de entrar e sair do terreiro, realizar rituais – de preservar o nosso legado.

A gente merece ser respeitado e o nosso sagrado também. Temos de ter liberdade de exercer nossa missão como yalorixá, babalorixá, yawo, abian, como filho de santo.

O que a ancestralidade de matriz africana pode nos ensinar para o futuro do Maranhão e do Brasil?

Os ancestrais têm a sua força cósmica e nos dão intuições de como proceder, de dar continuidade às nossas práticas, não por meio da violência, mas com simplicidade, humildade e respeito às outras religiões. Agora, a humanidade, em geral, constrói destruindo, como dizia Pai Euclides. Precisamos ter cuidado com a natureza. Quando se polui um rio, se polui todo um povo, incluindo os animais. Como consequência, o povo não tem o que comer, o que beber, adoece devido ao que consome. Nós de religião de matriz africana, que acreditamos no poder da natureza, somos afetados, mas todo o mundo sofre também.  Os ancestrais alertam, a natureza pede socorro e nós também.

Terreiro de mina e candomblé de Nação Jeje-nagô, fundado em 1954, a Casa Fanti Ashanti também é um centro cultural. (Foto: Márcio Vasconcelos)
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