Como a tradição da Páscoa se transformou em coelho e ovos de chocolate?
Da fé ao comércio: O Imparcial conversou com especialistas que nos relembraram o verdadeiro significado da Páscoa e como ela se tornou o que conhecemos hoje. Confira
Comemorada no domingo seguinte à lua cheia do equinócio da primavera, a Páscoa no Brasil festeja popularmente o dia que Jesus ressuscitou após ser morto e crucificado. Hoje, entretanto, a forma como passamos esta data pouco remete ao seu significado cristão – e nem tampouco ao anterior a ele, muito antes de Cristo ter pisado na terra. A redação de O Imparcial conversou com especialistas para compreender quando e como uma festa religiosa transformou-se na tradição envolvendo troca de ovos de chocolate que conhecemos atualmente.
Segundo o especialista em História Medieval e Teoria da História, Marcus Baccega, a Páscoa, originalmente chamada de Pessach, surgiu como uma festa judaica que celebra a libertação do povo hebreu da opressão do Egito. “Moisés lidera o êxodo hebraico e sacrifica um cordeiro – justamente chamado cordeiro pascal – em homenagem à libertação que procede de Iaweh”, conta o historiador.
“O Pessach judaico, como vitória da liberdade sobre o cativeiro, da libertação sobre a prisão, será apropriado pelo Cristianismo como grande acontecimento central da Fé, transformado em vitória da Vida sobre a Morte, triunfo do Deus Ressuscitado sobre as forças de opressão, tirania e oclusão da plenitude da História humana”, explica.
Ainda segundo Baccega, esta simbologia pascal adentrou os ritos da Igreja Cristã desde que ela surgiu, na segunda metade do século I. A partir do IV, quando o imperador Constantino converteu-se à fé cristã, “houve um crescente processo de greco-romanização do pensamento cristão e uma progressiva cristianização do Império Romano. Isto redundou na conversão do Pessach judaico na Pascha greco-cristã”, relata.
Pouco tempo depois, um concílio de bispos chamado ‘Primeiro Concílio de Niceia da Bitínia’ teria definido a data da celebração, que permanece a mesma até hoje. “O costume pascal que ainda hoje, em linhas gerais, cultivamos, surgiu de um complexo processo de transculturação entre a fé romano-cristã e as crenças germânicas e célticas, consideradas ‘pagãs’”, afirma o historiador.
O sociólogo Gamaliel Carreiro conta que, a partir da expansão do cristianismo pelo mundo, as festividades foram se adaptando e incorporando costumes religiosos dos povos conquistados. O maior exemplo deste fenômeno é o Coelho da Páscoa.
“Coelhos e ovos eram tradicionais símbolos que representavam a fertilidade para diferentes povos europeus. (…) Assim, passam a compor os símbolos da religião dominante e sendo agregados à comemoração cristã”, conta. “Toda a dimensão sexual presente no símbolo do coelho nas religiões pagãs desaparece quando ele é incorporado pelo cristianismo.”
Outro exemplo deste fenômeno, segundo Gama, é a celebração em homenagem à deusa Eostern, que costumava ser feita entre povos germânicos na mesma data. Isto explica o nome da Páscoa em inglês – Eastern – e em alemão – Ostern.
Uma data mercadológica
“Sobretudo numa sociedade pós-cristianizada, a tendência é que os elementos originais dessa festa percam sentido e importância para grupos que vivem suas vidas sem qualquer relação com a religião cristã” discorre Gama, sobre a comemoração da Páscoa na atualidade.
Apropriada pelo comércio, a celebração milenar resume-se hoje à troca de ovos de Páscoa. Mais de 10 mil toneladas de chocolate são produzidas por ano no Brasil para esta data, e 2019 registrou o aumento de até 40,52% nos preços dos ovos em relação ao ano passado, aponta o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE).
Ao ser questionado sobre como podemos resgatar a pureza do real significado da festa, Baccega afirma que a única forma é não cedendo ao mercado.
“Penso que tal resgate só possa ser efetivado em um contexto mais amplo de renúncia a apelos midiáticos e mercadológicos que transformam a Páscoa, infelizmente, em um grande espetáculo de consumismo e alienação simbólicos”, critica o historiador.
“Volto a insistir em como esta apropriação do Sagrado, do triunfo da Vida sobre todas as formas de morte e opressão, pela lógica do Capital é completamente incompatível com a fé e a ética do verdadeiro Cristianismo”, conclui.