Processos que reconhecem áreas indígenas no Maranhão podem ser interrompidos, diz Sônia Guajajara
Em entrevista a O Imparcial, a liderança indígena explica mudanças do novo governo na política indigenista e de demarcação de terras e como isso afeta etnias maranhenses
Uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, reconhecida internacionalmente, é do Maranhão. Seu nome é Sônia Guajajara, natural do município de Amarante, e coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A candidata à vice-presidência pela chapa de Guilherme Boulos (PSOL) nas eleições de 2018 conversou com O Imparcial sobre mudanças feitas pelo novo governo do presidente Jair Bolsonaro em relação à política indigenista e como essas alterações se relacionam com seis etnias do Maranhão.
Segundo Sônia, as demandas dos povos maranhenses “vão ficar agora arquivadas e congeladas porque o governo deixou claro que não vai dar continuidade”.
No segundo dia de administração, Bolsonaro tirou a Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça e colocou sob o novo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e transferiu a responsabilidade de demarcação de terras indígenas e de licenciamento de obras de infraestrutura que afetem comunidades indígenas para o Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (Mapa).
“Essa transferência de Ministérios é claramente a extinção da Funai”. Sônia Guajajara fala também sobre Flávio Dino, a região do Matopiba (área de expansão da fronteira do agronegócio que envolve os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a integração do indígena à sociedade e a importância da proteção da floresta.
Confira as melhores partes da entrevista exclusiva:
Como essas mudanças em nível federal afetam os povos indígenas do Maranhão?
Aqui no Maranhão nós temos terras em situação de desocupação, como é caso do território da etnia Krikatí. A terra foi homologada, mas tem tantos posseiros lá dentro que até agora o governo federal não reassentou adequadamente as famílias. Tem a terra indígena Bacurizinho, do povo Guajajara, e a terra Indígena Governador, da etnia Gavião, em Amarante, onde o processo é de ampliação do território. Tem a situação do povo Tremembé, que sofreu violenta reintegração de posse e ainda luta pelo reconhecimento de seu território. Há também os Gamela, que lutam pelo reconhecimento étnico, e por fim tem o povo Krenyê, em Barra do Corda, que não tem território tradicional. Essas são situações que serão paralisadas. Vão ficar agora arquivadas e congeladas porque o governo deixou claro, com essas novas mudanças, que não vai dar continuidade alguma a esses processos.
Você vê no governo Flávio Dino um apoio para as demandas dos povos indígenas?
Flávio Dino pode ser um grande aliado. Passamos os últimos dois anos fazendo uma discussão diretamente com o governo do estado do Maranhão. A gente constituiu uma Comissão Estadual voltada aos povos indígenas e discutimos, durante um ano, a política estadual indigenista. Foi resultado de um processo participativo, onde tinha um representante de cada terra indígena do Maranhão participando, além de todas as organizações indígenas do estado e do município.
Agora, no final de 2018, essa comissão foi transformada em Conselho Estadual. Criamos um Plano Integrado de Trabalho e a ideia em 2019 é avançar nessa discussão para implementar as propostas planejadas. Como estava difícil aprovar a criação do conselho pela Assembleia Legislativa, Flávio Dino aprovou por decreto.
Não é de hoje que os direitos indígenas sofrem ataques. O que muda com Bolsonaro no poder?
É mais radical ainda porque ele é um inimigo declarado. Por muito tempo, tentamos dialogar e colocar os povos indígenas como prioridade. Mas agora nem pauta os povos indígenas são – no sentido de garantia de direitos. Estamos indo no sentido reverso.
O novo governo diz em “integrar os indígenas à sociedade brasileira”. O que você acha que isso quer dizer?
As pessoas estão se deixando levar por esse discurso conservador, esse discurso do moralismo e é com isso que atacam os direitos humanos. É muito contraditório. Ao mesmo tempo em que querem que os indígenas se integrem à sociedade, acham que somos selvagens, como disse o próprio presidente. Quer dizer, o chefe-maior de Estado desconhece as minorias de seu próprio país e seus modos de vida. O governo tem que respeitar os diferentes modos de vida e não fazer todo mundo viver igual. Quando dizem que querem integrar, eles não respeitam os povos indígenas e sua cultura própria.
Qual sua opinião sobre transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura?
Essa transferência da demarcação de terras indígenas da Funai para o Mapa é exatamente para camuflar a decisão de inviabilizar toda e qualquer demarcação de terras indígenas e ainda rever processos de terras já demarcadas. Não tem como juntar a demarcação ao Ministério que tem o compromisso forte com o agronegócio. Eles olham as terras indígenas como improdutivas e como meio de ampliar os seus negócios.
Ainda em relação ao Mapa, a pasta também assumiu a responsabilidade de realizar licenciamento ambiental de grandes obras que afetem povos indígenas. Antes era dever da Funai. O que muda?
Antes já era difícil. Não estávamos de acordo com os projetos que impactavam diretamente não só os direitos mas a vida dos povos indígenas. Mas ao menos a gente tinha o direito de se manifestar. Agora, no governo Bolsonaro, a gente sabe que eles estão muito dispostos a criminalizar movimentos sociais. Vai ser muito difícil para fazermos resistência. Mas da mesma maneira em que estão decididos a passar por cima das pessoas, nós também estamos decididos a enfrentar. A responsabilidade vai ser total do governo, que não respeita os nossos direitos garantidos na Constituição Federal.
O Maranhão faz parte da região do Matopiba, a nova fronteira agrícola do agronegócio. Como está a preservação dessa região?
Não vai bem. Na região do Matopiba, o governo federal está entregando agora 73 milhões de hectares de área de Cerrado para expansão agrícola. Ao invés de garantir a preservação do Cerrado, que já está mais desmatado do que a Amazônia – o desmatamento no bioma aumentou 53% a mais do que na Amazônia – agora estão pegando o Cerrado e dando ao agronegócio para a produção de soja, milho e gado.
O agronegócio consegue conviver com a questão indígena e vice-versa?
Hoje são pautas contrárias: uma garante a proteção e preservação do meio ambiente e do outro lado é a expansão agrícola com desmatamento, criação de pastos e monocultura. São interesses muito divergentes. A gente não está dizendo que tem que acabar com o agronegócio. Mas da maneira que está hoje, eles querem usar as Unidades de Conservação da União, as terras indígenas, os territórios quilombolas para o agronegócio.
Presidente Bolsonaro transferiu a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Como você vê essa mudança?
Essa transferência de Ministério é claramente a extinção da Funai. Isso porque ela deixa de ter força jurídica para identificar, delimitar e demarcar terras indígenas e passa a ter uma função meramente moralista. A Funai fica como um sombra ali: acabou sua função e sua missão institucional. É uma forma mascarada para dizer que não extinguiu a Funai. Mas vamos continuar resistindo como sempre resistimos, há 518 anos.