Festejos juninos

Festa de São Marçal: sinônimo de fé e devoção

Grupos de bumba meu boi do Maranhão mantêm a tradição e fazem homenagens a São Marçal no bairro do João Paulo

Estátua de São Marçal localizada entre as avenidas Kennedy e São Marçal, em São Luís

Em sinônimo de fé, paixão e devoção, grupos de bumba meu boi de matraca se reúnem desde as primeiras horas da manhã deste sábado, 30, Dia de São Marçal, encerrando o ciclo de homenagens aos santos juninos. O Encontro dos Batalhões de Bumba Meu Boi, no bairro do João Paulo, arrasta multidões há 91 anos.

A Festa de São Marçal surgiu a partir da proibição aos grupos de bumba meu boi de seguirem para a área do Centro da cidade, sob pretexto de manutenção da segurança, ordem e tranquilidade. A polícia não permitia que os brincantes passassem do Areal do João Paulo. Lá mesmo, eles se encontravam e desde então o encontro dos grupos de bumba-boi foi se consolidando a cada ano e se expandiu, tomando proporções gigantescas.

Na pesquisa Os Batalhões pesados, escrita por Abmalena Santos Sanches, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da Universidade Ceuma, desde a primeira metade do século XIX até a metade do século XX, os grupos de bumba meu boi não eram vistos com “bons olhos” pela elite de São Luís, por isso foram proibidos de entrar no centro da cidade, restringindo-se seus espaços aos bairros do João Paulo até o Areal (onde hoje é o bairro do Monte Castelo), Anil e zona rural da ilha.

Nesse período, a imprensa maranhense, assim como a nacional, condenavam a brincadeira, considerando-a folguedo estúpido e imoral, própria de negros que atentavam à boa ordem, à civilização e à moral. Reprimido pelos órgãos estatais, a manifestação folclórica do bumba meu boi acabou sendo terminantemente proibida de qualquer apresentação entre os anos de 1861 e 1867.

De acordo com a antropóloga, a elite ludovicense tinha como modelo de civilidade a Europa, enaltecendo profundo orgulho pelas heranças da fundação francesa. Nesse contexto, as massas e suas manifestações culturais não passavam de um povo “matador de boi e pescador”, portanto era inadmissível à cidade com título de Atenas Brasileira pudesse compartilhar do mesmo espaço social que evocações populares vistas como ‘coisa de negros’, ‘bêbados’ e ‘fanfarrões’. “As apresentações iam até o Posto Fiscal e voltavam, não podiam passar. Eu tenho impressão de que incomodavam o povo antigamente. […] No São João, no Centro da cidade, tocavam fogos, foguetes, mas não havia o boi, porque não podia passar”, diz o trabalho da pesquisadora.

Preconceito com o boi

O preconceito, o desprezo e as proibições em relação às manifestações advindas dos setores mais pobres da sociedade maranhense se perpetuaram por vários anos. Até por volta dos anos de 1950, o bumba-boi era alvo de discriminação ativa. Podia-se ouvir até mesmo nas rádios pessoas que condenavam e “falavam mal desta brincadeira, que não tinha êxito porque era feita por pessoas pobres, pretas e analfabetas; que os tambores de crioula eram para serem dançados por misses”.

Abmalena Santos cita, na sua pesquisa, que já na década de 1930, mais precisamente no ano de 1939, um grupo de bumba-boi dançou pela primeira vez dentro da cidade e, em 1940, dançou no bairro do Areal (hoje Monte Castelo) e partir daí, nunca mais deixou de se apresentar. Em meados da década de 60, o grupo do Boi da Maioba chegou até a se apresentar na sede do governo estadual, o Palácio dos Leões, durante a passagem do então presidente João Goulart (1961-1964) pela capital.

Em 1929, os grupos, ao se deslocarem para o João Paulo, foram se multiplicando, iniciando a tradição do encontro de São Marçal e, por conseguinte, da própria aceitação da brincadeira de bumba meu boi nos bairros urbanos. Daí em diante, o bairro do João Paulo passou a ser a sede das mais diversas brincadeiras folclóricas, principalmente, na época das festas juninas, tornando-se, naquela oportunidade, o único arraial longe dos terreiros do interior da Ilha e muito próximo do centro de São Luís.

Para a antropóloga, tais dados podem refletir que, mesmo durante o período de proibição e nos anos de repressão militar, uma parte bem pequena da elite começava a se abrir à um novo olhar sobre a manifestação, aceitando melhor o bumba boi. Assim, este vai adquirindo, com o decorrer dos anos, outros sentidos e atribuições, passa a desfrutar de espaços na mídia com as primeiras gravações de discos de bumba-boi, e a frequentar outros ambientes, sendo, inclusive, solicitado a viajar para outros estados, representando o Maranhão.

Os grupos de bumba meu boi passam, então, a receber os primeiros incentivos através dos órgãos oficiais de Cultura, o que levaria ao início da institucionalização das brincadeiras, que precisam se cadastrar junto à Maratur (Empresa Maranhense de Turismo), criada no final dos anos 1960 pelo então governador José Sarney.

Hoje, a manifestação cultural mais importante do estado está prestes a se tornar Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade arrasta centenas de pessoas ao longo do mês de junho e se encerra com a festa de São Marçal, no bairro do João Paulo.

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