Canções atuais levantam debate sobre a música brasileira
Sucessos com letras consideradas simples levantam discussão a respeito de sua qualidade
O verão brasileiro começou ao som do hit Deu onda, do funkeiro MC G15. A circulação da música nas redes sociais ocorreu ainda em dezembro. No YouTube, o clipe oficial tem mais de 125 milhões de visualizações. No Spotify, a canção ocupou, por algumas semanas, o primeiro lugar entre as faixas mais ouvidas no Brasil. O hit dividiu opiniões. Há quem defenda a batida do “funk chiclete”. Há quem critique a letra, que tem frases de baixo calão como “meu p. te ama”, substituída depois por “meu pai te ama” para poder tocar nas rádios e em programas de televisão.
A repercussão de Deu onda fez com que surgissem diversas manifestações em relação à música, muitas delas que não criticam apenas a faixa, mas também as letras de outras composições que se destacam nas rádios e nos topos das paradas das plataformas digitais nos últimos anos — encabeçados por funks e sertanejos.
Um estudo publicado na Revista Sonora no ano passado, intitulado “Empobrecimento estético e música popular: a hipermidiatização da música e a formação de um novo público ouvinte”, de autoria de Kleber Mazziero de Souza, tentou explicar esse fenômeno. O doutor em comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo estudou as mudanças no mundo da música popular. No entendimento dele, o tal “empobrecimento” começou nos anos 1980, ganhando ainda mais força nos anos 2000, com a disseminação da música pela internet. Para ele, a música perdeu em harmonia, melodia (que classificou como de fácil absorção) e nas letras, “que apresentam erros de construção em temáticas românticas ou que tendem a uma espécie de erotização implícita em jogos de palavras”.
Contraponto musical
O músico e produtor da Alcachofra Records, Pedro Serapicos, diz que é importante ver que todos os tipos de música têm algo novo para mostrar. Ele gravou um vídeo e postou no YouTube defendendo que Deu onda pode ser considerada uma obra do politonalismo, uma corrente que surgiu no século 19 na música que buscava ampliar as possibilidades harmônicas nas canções. Segundo ele, a faixa faz uma ruptura incomum entre melodia e harmonia.
“A gente não pode ser preconceituoso com qualquer tipo de repertório. O funk muitas vezes é menosprezado, como sendo algo simples, trivial e banal, e até de mau gosto. Deu onda quebra uma barreira que pouquíssimas vezes foi quebrada na história da música, mesmo por artistas que a gente considera elevados”, afirma. Serapicos destaca ainda que é preciso, independentemente de gosto musical, ser capaz de analisar as músicas em seus devidos contextos.
Da mesma forma que Deu onda bombou em dezembro do ano passado e continuou ganhando força em 2017, a faixa Me curar de mim, da pernambucana Flaira Ferro fez sucesso nas redes sociais, mostrando que há espaço para todos os tipos de música. De um disco da cantora de 2016, Cordões umbilicais, a canção viralizou no WhatsApp e foi compartilhada por diversos usuários. A grande diferença entre Me curar de mim e Deu onda é que a canção de Flaira flerta com a MPB e tem uma letra com bastante simbologia ao falar dos defeitos de todo ser humano e na tentativa de reconstrução da vida.
“Na arte, a gente tem o potencial de comunicar para o bem e para o mal, como qualquer profissão. Como cantor, temos uma responsabilidade social. A música pode incitar homofobia, pedofilia, intolerância, racismo e outros preconceitos numa frase escondida, num duplo sentido. É preciso ter cuidado. Vejo que hoje esse momento está empobrecido, tem poucas pessoas interessadas em olhar o próximo. Vivemos num mundo em crise existencial, que se reflete também na música”, classifica Flaira.