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O grupo Gang do Eletro é um dos expoentes do tecnobrega no Pará
As batidas eletrônicas das festas de aparelhagem, no Pará, retumbam dentro do peito como faz o maracatu ao desfilar pelas ruas do Recife. Os estúdios caseiros, onde artistas produzem o tecnobrega paraense, têm moldes semelhantes aos mantidos por artistas recifenses. E a circulação da música, em mercado de divulgação e consumo alternativo, à parte da cena mainstream, praticamente se repete. À parte das semelhanças, facilmente identificadas por um olhar adaptado aos dois cenários, o tecnobrega precisa ser visto como fenômeno único. É o que defende a jornalista pernambucana Lydia Barros, autora do livro ‘O tecnobrega no contexto do novo paradigma de legitimação musical’ (Editora Appris, 253 páginas, R$ 57).
Fruto de doutorado em Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a publicação analisa como o tecnobrega desencadeou, no início dos anos 2000, a informalidade no mercado da música paraense. Contesta, ainda, a resistência de uma “elite” em relação à produção musical de periferia. “Além do campo da cultura, planejei contemplar um viés sociológico. Cheguei a investigar bandas pernambucanas.
Mas o tecnobrega era o grande fenômeno da ascensão da música de periferia, típico do Pará”, conta Lydia. Nos três anos que passou debruçada sobre o tema (com estágio de doutoramento na McGill University, no Canadá, nesse intervalo), a jornalista foi a festas de aparelhagem – como são chamados os shows tecnológicos com repertório tecnobrega – e entrevistou expoentes do gênero, como o DJ Beto Metralha e a cantora Gaby Amarantos, então vocalista da banda TecnoShow. “Gaby, na época da pesquisa, ainda não era uma diva pop. Conversamos informalmente, numa mesa de bar. Mas ela sempre soube que iria ‘acontecer’ como artista.”
Para o professor e pesquisador de Comunicação Social da UFPE Thiago Soares, a resistência a estilos musicais de periferia deve-se, em grande parte, ao temor do “outro”, algo explorado na antropologia. “Historicamente, isso sempre aconteceu. O fascínio da Europa pela América, por exemplo, devia-se ao fato do novo continente simbolizar o desconhecido. Temos, pelo outro, um misto de resistência e fascínio”, explica Soares. Questionar essa ambivalência – e, ainda, as hierarquias de gosto, responsáveis por classificar o brega e suas derivações, geralmente, como “pobres” e “descartáveis” – é o grande legado do livro, segundo a autora. “Além de servir como material de pesquisa acadêmica na área, raro nas últimas décadas, a publicação desvenda essa ‘virada’ nos paradigmas da música nacional.”
Ingredientes
Lydia Barros elencou quatro pontos que transformaram o tecnobrega em fenômeno da música nacional:
Tecnologia
A facilidade de acesso a aparelhos eletrônicos para a captação de imagens, além da democratização proporcionada pela internet na divulgação, horizontalizam a produção e o consumo da música. Os arranjos eletrônicos dão origem ao prefixo tecno.
Informalidade
A difusão do tecnobrega deve-se, grande parte, ao comércio informal dos discos produzidos em estúdios caseiros. Carrinhos de CDs piratas tornam a produção mais acessível, além de propagarem os hits.
Aparelhagem
As festas de aparelhagem, populares no Pará, reúnem multidões e, com megaestrutura, promovem os artistas locais ao nível de pop stars. Telões de led, equipamento potente de som e estruturas gigantescas movem o mercado local. Hoje, as festas não ocorrem apenas nas periferias.
Agilidade
Os hits são produzidos com agilidade pelos artistas do tecnobrega, às vezes sob encomenda dos produtores. Arranjos eletrônicos também são testados. Seguindo a dinâmica, os hits “estouram” e logo são sufocados por novas músicas. Isso torna o mercado competitivo, fugaz. O fenômeno se desenvolve com maior agilidade.
Entrevista
“Aquele discurso que dizia ‘isso é lixo’ não cabe mais”
As ditas “elites” que consomem música produzida nas periferias relutam, muitas vezes, em admitir essa preferência por gêneros como o tecnobrega. Acredita que isso está mudando?
Sim. O acesso às tecnologias horizontalizou a produção e o consumo da música. As fronteiras que antes restringiam a música da periferia somente à periferia se tornaram mais frágeis. A música circula, é tudo muito mais globalizado. Aquele discurso que dizia “isso é lixo, isso não presta” não cabe mais. É ultrapassado, além de preconceituoso.
É possível traçar um paralelo entre grupos do tecnobrega paraense e bandas pernambucanas? Alguns artistas do Recife podem ser comparados aos paraenses?
O modo como a música é produzida e consumida é semelhante ao da música de periferia em geral, no Recife e em qualquer outro lugar. Os estúdios caseiros, a produção independente, o comércio informal, a circulação do produto. Os artistas, porém, são diferentes. É difícil estabelecer essa simetria. Porque o tecnobrega “aconteceu” no país, tornou-se fenônemo, e é algo típico de Belém (PA). Não temos, aqui, um gênero com essa dimensão. E os ritmos também são diferentes.
Para os paraenses, o tecnobrega também é entendido como o “reaproveitamento de um padrão estético já desprezado pelas elites”, como citado no livro? Ou os fãs o compreendem como algo completamente novo?
Não existe, em Belém, esse conceito de que o que está sendo tocado ali foi fruto de reaproveitamento de algo – ritmos, batidas – desprezado pelas elites. Essa é uma discussão mais acadêmica. O resultado final, que é único, com batidas eletrônicas agregadas ao brega, é novo. É autoral, local.
Você argumenta, no livro, que apesar da dimensão regional e nacional do tecnobrega, o gênero só pode ser estudado, a rigor, in loco, em Belém do Pará. Como foi essa experiência presencial?
Vivenciar, pessoalmente, o tecnobrega foi muito enriquecedor para o desenvolvimento da pesquisa. Fundamental. Porque, embora os meios de produção e divulgação possam se comparar aos aplicados em periferias de todo o país, o tecnobrega em si, em toda a grandiosidade, é um fenômeno local. Lá, fui a festas de aparelhagem, acompanhei toda a estrutura extravagante desses eventos, o clima de paquera, os arranjos eletrônicos, o som retumbando dentro do peito. Essa aproximação com o objeto de estudo é essencial.