O ágar-ágar é uma substância extraída de algas marinhas e utilizada na cozinha ? no lugar da gelatina de origem animal, com vantagens técnicas e nutricionais. A chef Lia Quinderé, da confeitaria Sucré, em Fortaleza (CE), tem estimulado comunidades litorâneas locais a coletar algas com esse propósito, embora não consiga usar um único grama de ágar-ágar dessa fonte: ainda não conseguiram estrutura para processá-lo por lá. Por enquanto, usa o ingrediente importado, mas está revisando todas as suas receitas para banir a gelatina tradicional e acredita que conseguirá fazer dos vizinhos praianos seus fornecedores.
Nos últimos anos, mais e mais chefs brasileiros têm encontrado uma causa para chamar de sua. De norte a sul, luta-se para emplacar o cogumelo amazônico, usar sangue de galinha, ensinar o brasileiro a comer bom atum e até mesmo defender o direito de comer o controverso foie gras. Faz sentido: eles, que nunca gozaram de tanto prestígio e exposição midiática no país, somam a isso o conhecimento que têm para alavancar campanhas e projetos nos quais acreditam. O raio de ação desses profissionais não está mais restrito à cozinha.
No caso de Lia, a motivação veio ao constatar que, apesar do grande potencial para produzir o próprio ágar-ágar a partir da alga vermelha da espécie Glacilaria birdiae, o Brasil importa o produto e muitos profissionais ainda o desconhecem. “Ele é mais saudável, pois é menos processado e mais rico em fibra e proteína, além de mais poderoso. Numa receita que pede 12g de gelatina, precisaríamos de 3g de ágar-ágar. Temos um dever de casa fazer”, afirma Lia. Ela já modificou 60% das receitas da Sucré e, no momento, tenta conseguir equipamentos para que as comunidades se tornem independentes na produção – ou parceria com alguma indústria.
Ainda no Nordeste, André Saburó, do restaurante japonês Quina do Futuro, em Recife (PE), é outro chef com causa. Impressionado com a qualidade do atum pescado na costa pernambucana e embarcado diretamente para o Japão, resolveu pagar mais caro para trabalhar com peixe de melhor qualidade e, de quebra, deixou de comprar de barcos cujos métodos de pesca estressam os peixes (afetando o sabor) e matam outras espécies acidentalmente. Está pagando o dobro, mas sem repassar o custo ao freguês, garante.
“Estamos criando demanda por qualidade e o pernambucano já procura por esse atum. Ao mesmo tempo, de três anos para cá, diminuímos o consumo de salmão de 18 para 10 caixas por semana e aumentamos o de espécies locais, não só atum. Temos contato muito próximo com os pescadores locais. É uma maneira de termos produto bom, remunerarmos melhor o pescador pequeno e mantermos viva essa cultura. Há vantagens para todos os lados, é um ciclo que dá muito certo”, analisa Saburó.
Com atuns que podem chegar a R$ 3 mil nas mãos (das valorizadas espécies bigeye e yellow fin), ele também sentiu a necessidade de aproveitar tudo o que o animal poderia oferecer. Em vez de ficar restrito a sashimis, tratou de pesquisar como aproveitar cada parte dele. “Saímos dividindo o atum como se fosse boi de açougue, pesquisando o que era mais e menos gordo, fibroso e irrigado”, conta. Chegou a desenvolver com outro chef local, Joca Pontes, o “sarapatum”, sarapatel feito com os miúdos do peixe – atualmente, desenvolve “carne de sol” a partir de posta dele.
PENAS
É mais ou menos esse o ponto de vista de Julien Mercier, chef francês radicado em São Paulo, atualmente atuando em eventos. Contrário à lei que a prefeitura da capital paulista tenta fazer valer para proibir a produção e comercialização de foie gras (atualmente suspensa por liminar), ele não apenas defende o direito de consumir o fígado gordo de pato – um dos símbolos gastronômicos de seu país –, mas o aproveitamento do animal como um todo.
“Tento usar foie gras em todo evento que faço. Não pela publicidade, mas para mostrar às pessoas que, proibindo o foie gras, acaba-se também com o peito, as coxas e outras partes do pato que são muito saborosas, como moela, coração, pescoço e asa”, argumenta. Sobre a superalimentação à qual os animais são submetidos para que engordem (ponto principal nesse debate), ele argumenta que não envolve sofrimento, no caso dos produtores brasileiros com os quais trabalha.
“Aquelas imagens horríveis do pato com comida escorrendo pela boca não correspondem à realidade daqui, são geralmente da indústria de foie gras na Europa Oriental. Os patos daqui são criados soltos e com tudo o que precisam, confinados apenas nos últimos dias, quando recebem comida direto dos tratadores. Eles são aves migratórias e têm capacidade de assimilar grandes quantidades de alimento sem sofrimento. Sofrimento é botar um monte de galinhas num galpão com luz o dia todo e matá-las com 30 dias, quando as pernas nem aguentam mais o peso do peito, pois as pessoas só querem comer peito de frango”, afirma.
Outra ave que se tornou símbolo de uma causa foi a galinha. Ano passado, o casal de chefs paulistas Jefferson e Janaína Rueda lançou a campanha “Sangue é ingrediente” na tentativa de regulamentar a venda de sangue in natura, uma vez que a legislação paulistana proíbe a sua manipulação fora de abatedouros – fazer frango ao molho pardo por lá ficou teoricamente impossível. “Cresci comendo isso. Como não perder a tradição e ficar dentro da lei? Proibir não é o caminho. Por que não abrir um canal de conversa e evoluir?”, questiona ele.
Ele deixa claro que não briga pelo direito de matar galinhas dentro de restaurantes, mas por poder usar normalmente o sangue delas e de outros animais nas receitas. “Hoje, ter sangue de um animal na cozinha é praticamente como ter cocaína”, compara. Por enquanto, substituiu o sangue de galinha pelo chouriço (feito com sangue suíno) no preparo do frango ao molho pardo, mas não desistiu da luta. Está articulando ação conjunta com o Instituto Atá (de Alexa Atala) e pesquisando um frigorífico que lhe venda sangue congelado.
COGUMELOS
Num cenário dominado por exemplares japoneses, italianos e chilenos, o chef Felipe Schaedler, do Banzeiro, em Manaus (AM), sonha em ter constantemente em seu restaurante um cogumelo genuinamente brasileiro. Trata-se do Lentinula raphanica, cuja maior concentração fica na região amazônica e cuja produção em escala é um projeto recente, tocado por ele, a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Noêmia Ishikawa e uma fazenda de castanha-do-pará no estado, onde é feito o cultivo.
“O sabor lembra o do shiitake, mas mais leve. Dá para comê-lo fresco, mas atinge o pico de sabor quando é desidratado. Vale a pena abraçar essa causa, porque teremos, pela primeira vez, um cogumelo nosso, que leva o sobrenome Amazônia e, por isso, deverá despertar interesse no mundo. É um projeto sustentável e pode gerar fonte de renda na região, pois muita gente pode cultivá-lo, é relativamente fácil”, observa Schaedler. A produção acompanhada por ele ainda é pequena: este ano, colheram apenas 10 quilos.
ORGÂNICOS
Em Minas Gerais, um dos chefs que levantam bandeiras é Frederico Trindade, à frente do restaurante que leva seu sobrenome, em Belo Horizonte. Seu foco é na relação próxima com pequenos produtores locais, que fornecem para a casa de vegetais orgânicos (como miniquiabo e cenouras coloridas) a queijos de leite cru (a exemplo dos de cabra de Onivaldo Leão). “Não podemos ter uma fazenda, mas temos quem nos atenda. Buscamos o melhor produto e intervimos o mínimo para que chegue de forma natural à mesa”, sintetiza Trindade. Ele planeja para breve usar exclusivamente legumes orgânicos no restaurante (inclusive nos preparos de base) e, para isso, anda em negociação com fornecedor vizinho.