O baú de Cássia Eller (1962-2001) é vasto e amoroso. Dele já saiu material para o disco póstumo “Do Lado do Avesso” (2012), para o documentário sobre a cantora dirigido por Paulo Henrique Fontenelle e lançado ano passado, para o CD “O Espírito do Som”, com dez faixas gravadas por ela ao violão aos 21 anos, e que chega às lojas e ao iTunes nesta quinta-feira, 09, e ainda para outros dois CDs, com registros de espetáculos teatrais e shows que a cantora fez em Brasília e no Rio, estes em fase de planejamento.
“O Espírito do Som”, que a Coqueiro Verde lança como volume um, tem covers de Cássia em português, inglês, espanhol e francês. O caráter amador foi mantido.
“Eram músicas de que ela gostava muito e que apresentava em shows em Brasília. Quando encontrei a fita, mal dava para ouvir, de tão sujo”, conta a jornalista Elisa de Alencar, que cedeu o cassete à família da cantora, que morreu em razão de um enfarte do miocárdio repentino, no final de 2001.
Oito anos mais velha, ela foi o primeiro namoro firme de Cássia e aparece na foto do encarte com a cabeça em seu colo. A gravação foi feita no 3-em-1 da casa do Lago Sul que ela dividia com amigos, na qual Cássia era assídua. A cantora plugou o microfone, cantou cerca de 20 músicas e entregou o resultado a Elisa para que ela entregasse de presente a seu irmão, que morava em Olinda.
Material intacto
Trinta anos e algumas mudanças de imóvel depois, o material foi encontrado, limpo e, agora, apresentado aos fãs de Cássia na condição de relíquia. A seleção já mostra o ecletismo que marcaria sua trajetória artística. Em “Segredo” (Luiz Melodia), ouve-se a Cássia visceral, que canta os versos “eu quero mais/muito mais/ser um calado coração trancado” como quem os sente fundo; já em “Ausência” (Ednardo) e “Sua Estupidez” (Roberto/Erasmo), a voz é quase infantil.
“For No One” (Lennon/McCartney) é doçura e lirismo; “Ne Me Quitte Pas” tem a mesma carga dramática da versão que ela faria no Acústico MTV, lançado em março de 2001, nove meses antes de sua morte. O CD tem ainda uma música de Cássia com a amiga Simone Saback, “Flor do Sol” (a intérprete só deixou seis composições, pelo que se sabe até agora).
“Foi incrível quando ouvi. Descobrir o timbre daquela época, a voz limpa, a Cássia já buscando um repertório e aquela maneira só dela de cantar”, diz Rodrigo Garcia, que tocou com ela de 1997 a 2001 e, a pedido da mulher de Cássia, Maria Eugenia Vieira Martins, e do filho, Francisco, vem trabalhando em seu acervo.
Eles são sócios do selo Porangareté (palavra indígena extraída de “Flor do Sol”), pelo qual está saindo o CD. “Tem muito material inédito, estamos sempre garimpando. Mas nem tudo vale a pena lançar, do ponto de vista artístico.”
No caso do volume um, Garcia explica que a produção “é muito mais sentimental do que técnica”.
Próximos projetos
O dois próximos CDs que planeja deve ter registros de espetáculos teatrais em que Cássia cantava e atuava, como o cabaré Gigolôs, que dividiu com o ator Marcelo Saback na mesma época. No repertório, de “Surabaiya Johnny”, de Kurt Weil e Brecht, a “Tem Francesa no Morro”, de Assis Valente, passando por Gershwin e Lamartine Babo. O volume três deve se concentrar em shows.
Não há pressa para lançá-los. “Quando ouvi, fiquei muito emocionada. Acho que as pessoas que gostavam muito dela devem sentir essa emoção também. Não tenho pudor de lançar porque não é para vender horrores, é para os fãs”, justifica Eugenia.
Em casa, ela tem um armário inteiro de fitas com material bruto, entre ensaios caseiros e brincadeiras de Cássia com amigos músicos.
Para o cineasta Paulo Henrique Fontenelle, que pesquisou por quatro anos para fazer o documentário lançado no ano passado, os fãs ainda têm bastante a ganhar.
“Tem muito áudio e muita imagem de Brasília e do Rio guardados. E cartas que dariam um ótimo livro, mostrariam a visão de mundo da Cássia”, disse o cineasta.
Numa delas, incluída na arte do CD, a Cássia jovenzinha já dizia: “É bonito, quando eu canto e estou satisfeita. É doído, quando canto e estou angustiada. Eu cantando sei mais de mim.”