A HORA MAIS FELIZ

Exposição mostra como as pessoas se transformam depois que largam o serviço

Em cartaz no Teatro Espanca!, fotografias apontam as diferenças, de corpo e alma, são evidentes para todos

Arte

No filme ‘Crônica de um verão’ (1961), dos franceses Jean Rouch e Edgar Morin, há uma frase que resume bem o espírito de uma mostra de fotografia que está sendo apresentada no Brasil: “A gente é uma pessoa até as 18 horas e outra depois”, afirma o fotógrafo André Hallak, um dos participantes do projeto ‘Depois do expediente’, do Coletivo Taz, dos pesquisadores Daniel Toledo e Marina Câmara. A iniciativa compreende a produção e a exposição de fotos de trabalhadores em duas situações distintas: vestidos com seus uniformes de trabalho em um primeiro momento e com as roupas que usam quando estão livres de suas funções. “A gente tentou ultrapassar um pouco essas relações funcionais”, diz Daniel Toledo. “Buscamos compreender quem são essas pessoas que se escondem por trás do trabalhador. Muitas vezes esquecemos que há um indivíduo ali porque o uniforme apaga um pouco a pessoa.”

Tudo começou em 2013, durante uma residência artística no Jardim Canadá, em Nova Lima. Como a região tem muitas fábricas, madeireiras e marmorarias, o interesse pelo tema foi logo despertado. Os fotógrafos registraram trabalhadores das mais variadas profissões, observando como cada pessoa lida com seu vestuário de trabalho e como este exerce várias funções.
“Ao mesmo tempo em que tem aquele funcionário que anda todo paramentado, com capacete, macacão, bota e máscara por uma questão de segurança – e aí a pessoa fica completamente invisível –, outros usam a coisa mais básica, como um avental”, continua Daniel Toledo. “Cada trabalhador tem uma relação com seu uniforme. Às vezes uma pessoa fica mais tempo de uniforme do que de roupa normal. Parece uma coisa banal, mas não é. Quando se troca o uniforme, troca-se de fisionomia e de imagem.”
Daniel acrescenta que à medida que desenvolveram o projeto – Depois do expediente passou também pela Lapa carioca –, os envolvidos foram entendendo toda a complexidade por trás da empreitada. Nesses últimos dias, em que estavam no Centro da cidade fotografando para a mostra do Espanca!, a percepção já foi outra. “Ali é uma região que tem muito dentista. E o interessante é que eles não tiram o uniforme quando deixam o trabalho. Eles têm até um certo orgulho do seu vestuário. É diferente, por exemplo, de alguém que trabalha numa lanchonete. Tem uniforme que melhora a imagem social de uma pessoa, outro faz o contrário. É bem interessante”, acrescenta.
REVELAÇÕES
André Hallack, o único dos fotógrafos convidados que participou das três edições do projeto (Jardim Canadá, Rio e BH), comenta que ficou nítido com essa experiência que há uma separação muito rígida entre trabalho e vida pessoal. Com a questão do uniforme, essa diferença é ainda mais gritante. “Não deveria ser assim”, acredita. “As pessoas ficam diferentes nesses dois contextos: serviço e pós-serviço. É engraçado como o trabalho formata a gente para um determinado tipo de postura e posicionamento.”
 
Mesmo tendo registrado vários personagens, alguns o impactaram mais. André se lembra de uma açougueira que trabalha em um supermercado no Jardim Canadá que se transforma completamente quando larga o serviço. “Com as mulheres isso é bem visível, porque tem a questão da vaidade, algumas prendem o cabelo, colocam touca. Com essa moça, lá no açougue, ainda mais que não é um lugar tão comum de se encontrar mulheres, isso ficou bem evidente. Lá dentro, ela fica com todos aqueles apetrechos típicos e quando sai é outra figura, toda arrumada, de vestido, cabelo solto”, conta.
Outro que chamou a atenção de André Hallack foi o gerente de um hotel no Rio de Janeiro que também ficou irreconhecível quando tirou o uniforme. “Lá dentro, ele usa camisa de manga comprida, terno, cabelo arrumado, uma coisa bem formal, e quando larga o trabalho deixa os braços à mostra, e aí você vê as tatuagens, o cabelo é todo arrepiado. É impressionante como muda”, recorda.
O fotógrafo revela que a intenção sempre foi expor nos locais onde o projeto foi realizado. No caso do Teatro Espanca!, além de as fotos serem mostradas dentro do espaço, as imagens tiradas no Hipercentro serão projetadas na fachada do prédio. “Ainda mais que a mostra começa justamente depois do expediente, algumas das pessoas que foram retratadas poderão até se ver ali. E como é à noite, a visibilidade fica bem melhor”, justifica Daniel Toledo.
IDENTIFICAÇÃO Além de André Hallak, também participam da mostra os fotógrafos Laura Fonseca, Luiza Palhares, Marcelo Castro, Paula Huven e Warley Desali. Mas para uma das profissionais essa experiência é mais que especial: Aline Pereira ainda está iniciando na fotografia e não poderia ter escolhido uma oportunidade com que se identificasse tanto como essa. Ela, que tem 32 anos, começou a trabalhar aos 13, e em boa parte de sua trajetória profissional teve que usar uniforme, inclusive como balconista de uma padaria que fica no entorno do Espanca.!
“Era muito surreal, porque quando eu deixava o trabalho as pessoas nem me reconheciam”, conta Aline. “Ali dentro eu estava desempenhando um papel profissional, e quando saía era eu mesma. Eu me identifico muito com essa iniciativa, porque tem tudo a ver com a minha história, além de ser uma questão de reconhecimento mesmo. E todos nós somos trabalhadores. Essa reflexão é muito legal.”
Daniel Toledo acrescenta que a ideia é que a iniciativa seja de longo prazo. Pode até ser que ele a transforme em livro daqui a um tempo. “O material é muito bacana, porque além das imagens tem toda uma história por trás dos personagens. E a gente quer sistematizar isso, intensificar a pesquisa”, justifica.
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