“A minha inspiração foi ver como esses artistas se apropriaram da palavra ‘gueto’, tão carregada de visões pejorativas, e trocam este significado para algo bom. Isso me encheu de esperanças”, conta a fotógrafa belga Alice Smeets sobre o projeto ‘Ghetto Tarot’.
Alice resolveu unir três paixões — o mundo espiritual, a cultura e o povo do Haiti — para registrar imagens de haitianos reproduzindo cenas estampadas nas cartas de tarô europeias, em uma favela de Port-au-Prince, capital do país. Os modelos são integrantes do grupo ATIZ Rezistans, artistas e moradores do ‘gueto’ que buscam se libertar da imagem negativa de onde moram. Alice, além de fotógrafa, é artista e cineasta, e ficou mundialmente conhecida após ganhar o prêmio de fotografia do Unicef em 2008, com um trabalho também sobre o Haiti.
O espírito do projeto ‘Ghetto Tarot’, segundo ela, é destacar a criatividade e a força dos moradores do gueto para dissolver o círculo de dependência e vitimização que se encontram. “Esperamos que o mundo comece a olhar para as qualidades e a capacidade dos moradores ao invés das deficiências”, explica. O ATIZ Rezistans usa o lixo para criar arte sob a perspectiva da própria vivência – reflexo da beleza escondida entre as sucatas. Eles receberão 20% do lucro da venda das cartas de tarô. Com o projeto, ela conta que o grupo já recebeu e-mails e ligações de muitas pessoas ao redor do mundo que gostariam de visitá-los para discutir a causa.
Em entrevista, a fotógrafa ainda disse que, ao misturar imagens estampadas no tarô com cenários do cotidiano de um dos lugares mais críticos do mundo, quis aproximar o “mundo moderno” das pessoas adeptas ao tarô — e vice-versa. Além disso, Alice explica que a escolha do espaço foi primordial para a criação de um ambiente pessoal, longe de imagens estereotipadas da pobreza, para poder ilustrar, em meio à favela, os espíritos e os significados das cartas com um toque de humor. “Lá não existe só pobreza e destruição. Eu queria quebrar essa imagem e destruir preconceitos. Eu pude, por exemplo, mostrar às pessoas negras os cartões tradicionais europeus e quebrar essa barreira sem sentido”, acrescentou.
Além de ter morado no Haiti durante dois anos, a artista visita o país regularmente desde 2007 e revela que a espiritualidade do local mexeu com sua vida. “Sempre senti compaixão pelo povo que vivia em condições precárias, algo frequente no Haiti. No entanto, com ele eu aprendi que não importam as circunstâncias, ser feliz depende de muitas outras coisas que não as materiais”, complementa.
O grupo ATIZ Rezistans vive no extremo sul da Grand Rue, principal avenida norte-sul de Port au Prince, entre o emaranhado de becos e ruelas que cresceram próximas à pista. Há uma área que, tradicionalmente, produz peças de artesanato para o mercado turístico cada vez menor na região. A comunidade — por sinal muito unida — é cercada por um depósito de reparação de automóveis um pouco improvisado, fonte de renda para os moradores. Muitos deles reciclam para criar. Entre os materiais utilizados tanto nas próprias produções como no Ghetto Tarot, estão motores, aparelhos de TV, calotas e madeira.