opinião

Virada do ano e sincretismo religioso

Yuri Costa (*), Marco Adriano Fonsêca (**) e Jorge Serejo (***)- Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**) Advogado e Professor FMA e UNDB (***)

As comemorações de fim de ano vêm acompanhadas de esperança e do desejo de sucesso nos projetos para o ano seguinte. Grande parte dessas aspirações se relaciona com o exercício da espiritualidade, independentemente da religião professada por quem encare o novo ano com positividade.

Nesse contexto, hábitos culturais originários das religiões de matriz africana fazem parte do costume geral dos brasileiros e brasileiras. Se hoje pessoas não pertencentes a comunidades de terreiros de matriz africana vestem branco, celebram a virada do ano pulando sete ondas no mar ou fazem pedidos e levam oferendas à praia, é porque na base da nossa herança cultural estão as marcas de religiões como o Candomblé e a Umbanda, que na virada de ano realizam cerimônias religiosas em homenagem aos orixás Iemanjá e Oxalá, divindades africanas da tradição iorubá.

Como regra, as religiões de matriz africana têm como fundamento a harmonia entre o ser humano, o universo e as divindades ligadas aos elementos da natureza, denominadas de Orixás, Voduns, Inquices, Encantados. Através da fé e da celebração, essas expressões religiosas promovem os ideais de união, respeito e solidariedade como valores essenciais para a vida comunitária.

Ainda que muitas pessoas desconheçam a origem africana que dá base a tradições de fim de ano, reproduzem-nas a partir de cosmovisões incorporados à cultura popular no Brasil.

Com efeito, vários elementos das religiões de matriz africana foram incorporados à cultura popular brasileira e estão naturalizados no cotidiano como evidências positivas do culto a ancestralidades africanas. Mas nem sempre foi assim.

Desde o período colonial, há uma forte repressão a praticantes de religiões de matriz africana. O discurso propagado pelo Estado e pela sociedade era o de inferiorização e demonização de crenças e práticas que não se identificassem com o catolicismo, adotado oficialmente como religião em Portugal e em suas colônias.

A criminalização de práticas religiosas de matriz africana foi projetada para o Brasil independente. Contribuiu para isso a ideologia racista que legitimou a escravidão de pessoas africanas e de seus descendentes. Num contexto em que não havia liberdade religiosa, não foi coincidência que elementos associados a tradições africanas fossem estigmatizados e proibidos.

Nascido confessional, o Brasil positivou a restrição de cultos não-oficiais no contexto da formalização do seu desenho institucional e forneceu ao imaginário cultural um imenso arsenal de associações pejorativas dirigidas aos cultos não-majoritárias que perdura até hoje. Inúmeros Códigos de Postura municipais surgiram para associar as “danças de tambor”, curas, pajelanças, e tantas outras práticas curativas seculares afro-indígenas ao baixo espiritismo, magia negra, feitiçaria, bruxaria, sortilégios etc. O advento da laicidade republicana apenas manteve a lógica do racismo institucional ao criar tipos penais como o curandeirismo, o espiritismo e o exercício ilegal da medicina, para reprimir e controlar, sob forte racialização, grupos vulnerabilizados antes subjugados à escravidão.

Na afirmação da sua humanidade ao longo dos séculos, praticantes das religiões de matriz africana e suas comunidades buscaram estratégias diversas para exercer o culto à sua ancestralidade. Parte dessa resistência se deu pelo recurso ao sincretismo religioso, que, em síntese, consiste na adaptação da ritualística religiosa para incluir, incorporar ou combinar linguagens, símbolos ou objetos originários de outra matriz.

A associação de alguns santos católicos aos orixás possibilitou que os praticantes de matriz africana pudessem cultuar suas divindades mesmo diante da repressão do poder público e da Igreja Católica, inclusive com a convergência entre datas comemorativas católicas e de matriz africana. A ligação entre Oxossi e São Sebastião, Ogum e São Jorge, Oxum a Nossa Senhora, Oxalá a Jesus, fazem parte dessas tradições. Aliás, a convergência de celebrações e liturgias estão na base de religiões como a Umbanda e o Tambor de Mina. Inclusive é por conta dessas teias de negociação e de conflito, em um sentido mais amplo, que o povo brasileiro deve em grande parte suas marcas culturais na música, na culinária, na língua, na dança, na indumentária, nos costumes.

Nossa atual Constituição Federal, de 1988, prevê seu artigo 5º a ampla garantia da liberdade religiosa. Também prevê expressamente o repúdio ao racismo e a vedação de discriminações odiosas. Em uma leitura étnico-racial, expressa nos artigos 215 e 216, é também garantidora da proteção das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Em outras palavras, modos de vida tradicionais e cosmopercepções portadoras de referência, identidade, ação, memória, dos diferentes agrupamentos minoritários formadores do nosso processo civilizatório estão ali formalmente protegidos; o que, porém, não afasta o ainda persistente estado de terror racial que persiste contra cultos de matriz africana e seus praticantes. Os dados oficiais evidenciam a escalada do número de denúncias de práticas discriminatórias contra povos e comunidades de terreiro.

A violência religiosa deve ser compreendida a partir de uma visão interseccional, que estabeleça o diálogo entre religião e o recorte racial. O acúmulo ao longo da nossa história de preconceitos, perseguições e derrogações de práticas religiosas se reflete não apenas um quadro de intolerância religiosa, ou seja, do embate entre concepções espirituais de mundo. Na verdade, ele configura racismo religioso, pois a motivação dos ataques está diretamente associada à discriminação racial.

Em tempos em que o racismo religioso ainda mostra a sua violência e letalidade, e se reedita no contexto da transição fundamentalista neopentecostal, é importante ressaltar a relevância das religiões de matriz africana como patrimônio cultural, espiritual e histórico no Brasil. Os territórios sociais onde são consagradas constituem espaços de acolhimento, de vida comunitária, de saúde coletiva, de promoção do bem comum e de construção de sentidos de mundo.

Tal reconhecimento é essencial para a mudança da perspectiva preconceituosa e estigmatizada ainda predominante, caminhando para a promoção da cultura de paz e de respeito a todas as formas de expressão religiosa e espiritual. Reconhecer a origem ancestral de matriz africana dos rituais praticados por quase todo o conjunto da população na virada de ano é uma boa forma de iniciar conquistas nesse sentido.

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