Racismo à brasileira
Yuri Costa (*) e Marco Adriano Fonsêca (**) – Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**)
Entender o funcionamento do racismo e seus mecanismos de reprodução é algo extremamente desafiador. Qualquer teoria geral sobre o racismo é certamente limitada diante das experiências históricas que marcaram e ainda marcam as diferentes sociedades. Nesse sentido, cabe a pergunta se no Brasil existe uma forma própria de racismo e em que medida nossa vivência coincide ou não com a de outros países. Afinal, existe um racismo à brasileira?
Um dos primeiros acadêmicos que se dedicaram a essa questão foi o sociólogo Oracy Nogueira, que viveu entre 1917 e 1996. Ele foi pioneiro na tentativa de entender a construção dos estigmas que envolvem o racismo sob o ponto de vista sociológico. Não é exagero afirmar que, ao menos no campo acadêmico, foi precursor do que veio a ser chamado de racismo estrutural.
Na década de 1950, Oracy escreveu textos que estabeleceram a diferença entre o que denominou de “preconceito racial de marca” e “preconceito racial de origem”. Em linhas gerais, defendeu que no Brasil o racismo age por meio da marca, ou seja, do que é aparente nas pessoas, sobretudo o fenótipo. Já em países como os Estados Unidos, o racismo se afirma a partir da ascendência, da origem das pessoas, ainda que elas não possuam traços fenotipicamente negros.
A definição de racismo de marca interessa ao debate sobre o racismo à brasileira. Porém, é preciso ter alguns cuidados com o uso dessa categoria. O próprio Oracy Nogueira afirmou que suas definições seriam “conceitos ideais”, ou seja, que pensam situações abstratas, possuindo limitações quando se passa a estudar as manifestações do racismo caso a caso. Por isso a noção de racismo de marca não é algo absoluto, embora sirva como interessante indicativo da reprodução de estimas e preconceitos em nossa sociedade.
Além disso, a ideia apresentada por Oracy é um tanto quanto generalizante, sobretudo quando procura identificar as consequências do racismo de marca, diferenciando-as das implicações do racismo de origem. De fato, sua teoria precisa ser atualizada e colocada à prova diante de noções como interseccionalidade, que busca entender a justaposição de fatores que definem privilégios e desvantagens em sociedade. Apesar disso, indiscutivelmente serve como relevante ponto de partida para o debate sobre a dinâmica do racismo no Brasil.
A distinção entre racismo de marca e racismo de origem tem como base a análise comparativa entre a sociedade brasileira e norte-americana. E isso não é coincidência. Oracy Nogueira desenvolveu sua teoria a partir de reflexões feitas quando esteve nos Estados Unidos, onde cursou o doutorado. É importante ressaltar que ambos os países, Estados Unidos e Brasil, construíram as bases do racismo que hoje estrutura sua sociedade no contexto de desagregação do escravismo e a partir da reelaboração de teorias raciais predominantes no século XIX.
Nos EUA, o racismo de origem possuiu um relevante grau de institucionalidade. Num país onde a segregação racial esteve expressamente prevista em leis, a referência à origem das pessoas foi fundamental, por exemplo, para a distribuição dos direitos civis. No pós-abolição, o Judiciário norte-americano utilizou o paradigma da origem como teoria jurídica válida, consolidando a tese conhecida como “uma gota de sague” (One-drop rule), que previa que qualquer ascendente negro, por mais distante que esteja e ainda que não influencie a aparência de alguém, torna essa pessoa negra.
Já no Brasil, como mencionado, predominaria o racismo de marca, que tem as características fenotípicas do indivíduo como principal critério de discriminação. Para Oracy Nogueira, a dinâmica de nosso racismo se baseia no estigma do que é visível, sobretudo a cor da pele, os traços faciais e a textura dos cabelos. Não deixa ainda de levar em consideração outros elementos, como sotaques e gestos. São essas marcas que compõem a aparência racial das pessoas, associando-as a grupos racializados e definindo quem sofre ou não preconceito.
Como já citado, o racismo de marca é um importante ponto de partida para a análise do racismo em nosso país. Precisa, porém, ser atualizado. De acordo com o antropólogo José Jorge de Carvalho, desde que Oracy Nogueira apresentou sua teoria, houve uma relevante reconfiguração do debate em torno do racismo no Brasil. O início do século XX trouxe o desafio da implantação de políticas públicas voltadas à população negra, dentro do contexto das chamadas ações afirmativas.
Segundo Carvalho, esse quadro somou à ideia de “marca” uma importante dimensão jurídica. A definição das identidades raciais deixou de ser algo apenas subjetivo, ou seja, relacionado a como as pessoas se veem e como veem ao outro. Passou a ser um forte elemento que dá base à reivindicação de direitos frente ao Estado.
De fato, as ações afirmativas reorganizaram a discussão em torno do racismo no Brasil, evidenciando o debate sobre o racismo de marca. Ora, se a discriminação racial contra as pessoas negras é baseada predominantemente na aparência das pessoas, a construção de políticas públicas de inclusão e emancipação social da população negra deve ser pautada pelo mesmo critério discriminatório.
Para a validação da autodeclaração do candidato a cotas étnico-raciais como negro, foram constituídas as comissões de heteroidentificação étnico-racial, que concentram sua avaliação no elemento fenotípico, na aparência, nos traços físicos e fisionômicos do indivíduo, contextualizando assim a visão social de quem é a pessoa negra. As comissões dispensam a análise da ascendência, ou seja, do genótipo da pessoa interessada a concorrer às cotas.
O critério utilizado pelas comissões tem como base a noção de que o fenótipo é o principal fator que determina socialmente o racismo. Parte da ideia de que o racismo à brasileira se sustenta nas marcas da aparência, devendo por isso fundamentar a definição dos destinatários das ações afirmativas de cunho étnico-racial.
Nesse contexto, é essencial que o público em geral e especialmente as instituições do Sistema de Justiça estejam atentos e dominem esses conceitos e categorias. Somente assim serão observados os propósitos a que se destinam as ações afirmativas, viabilizando avanços no panorama da equidade racial.
Por fim, deixamos a referência de duas obras literárias que ilustram bem o contexto do senso comum sobre as discriminações raciais no Brasil, abordando transversalmente o conceito de racismo de marca. São elas “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, e “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório.