opinião

O racismo institucional e seus “filtros”

Yuri Costa- Defensor Público Federal e Professor UEMA e Marco Adriano Fonsêca- Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA

Yuri Costa
Defensor Público Federal e Professor UEMA
Marco Adriano Fonsêca
Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA

Opinião desta terça-feira (02). (Foto: Banca OImparcial)

Uma pesquisa inédita levantou que cerca de 10 mil vagas deixaram de ser reservadas a pessoas negras em concursos públicos realizados por instituições federais de ensino. O estudo foi publicado em março de 2024 e realizado, conjuntamente, pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Movimento Negro Unificado (MNU). Os números são dos últimos dez anos, período em que vigora a Lei n. 12.990/2014, que reserva 20% das vagas de concursos públicos a pessoas negras, as chamadas cotas raciais.

Em todos os concursos investigados houve a previsão de vagas para negros e negras. Porém, por diferentes razões, as cotas deixaram se ser preenchidas ou foram ocupadas em número bem abaixo do que deveria ser. A principal estratégia para o descumprimento da lei foi fragmentar a previsão de vagas dos concursos em especialidades ou em localidades, de forma a escapar do percentual mínimo exigido para a aplicação das cotas raciais.
O exemplo demonstra que não basta haver a previsão das cotas em lei se as instituições responsáveis por sua implementação criam meios para a descumprir. Serve para fazermos uma reflexão ainda mais profunda. As políticas afirmativas em benefício de negros e indígenas, cujo objetivo principal é promover a reparação histórica pelos séculos de escravização e genocídio dessa população, enfrentam barreiras que vão muito além da existência de normas as regulamentando. Afinal, a despeito da previsão formal em leis, quais mecanismos incidem para inviabilizar concretamente as políticas de justiça étnico-racial?
A esses mecanismos de burla e invisibilização das políticas de atenção a negros a jurista baiana Lívia Sant’Anna Vaz dá o nome de “filtros raciais”. Os “filtros” funcionam mantendo o aparente cumprimento da lei, mas criando formas diversas de desvio de sua finalidade. São “filtros” exatamente por isso, porque constroem barreiras que, vistas em separado, parecem naturais ou mesmo desconectadas da política pública, mas que, somadas, implodem seu propósito, tornando-a ineficaz.

Mas quem constrói os mecanismos de filtragem racial? E para quê? As respostas não podem ser alcançadas sem percebermos a relação entre os “filtros” aqui tratados e o chamado racismo institucional.

Racismo institucional são estratégias presentes em instituições públicas e privadas que dificultam a presença dos negros e negras nesses espaços. Há racismo institucional, por exemplo, quando um órgão cria critérios de promoção dentro de sua hierarquia com implicações raciais, no sentido de privilegiar pessoas brancas em detrimento de pessoas negras. Essas estratégias não precisam ser explícitas ou formalizadas, e quase nunca são. O racismo se dá pelo estabelecimento de parâmetros discriminatórios que servem para manter o domínio de um grupo racial sobre outro. Pulveriza-se em padrões culturais, meritocráticos, estéticos e religiosos – apenas para citar alguns exemplos – que, pautados numa hegemonia branca, institucionalmente segregam e inferiorizam o negro.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu expressamente a existência do racismo institucional e seus efeitos. Ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 41, em junho de 2017, assim registrou: “Esse tipo de racismo não decorre necessariamente da existência de ódio racial ou de um preconceito consciente de brancos em relação aos negros. Ele constitui antes um sistema institucionalizado que, apesar de não ser explicitamente ‘desenhado’ para discriminar, afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas”.

Há também racismo institucional quando se insiste em não construir espaços de discussão das desigualdades étnico-raciais que historicamente marcam os órgãos públicos e privados ou em se negar a necessidade de políticas que promovam a superação de desequilíbrios. Essa conduta, infelizmente comum no Brasil, naturaliza o domínio do grupo racialmente hegemônico. Ao fim e ao cabo, serve para a manutenção das mesmas pessoas (não negras) nos lugares de decisão e de condução das políticas institucionais.

O racismo institucional, como regra, se refere a práticas aparentemente neutras no presente, mas que perpetuam o efeito de discriminações praticadas no passado. Por isso serve como categoria importante para o debate antirracista. Auxilia a superarmos a discussão sobre, por exemplo, se determinada instituição ou seus membros são explicitamente racistas nos dias de hoje. Não é apenas o comportamento do presente que deve ser observado, mas como as instituições trazem em seus padrões de conduta décadas ou mesmo séculos de segregação. Basta vermos os números da representatividade de negros e negras nos postos de comando de qualquer instituição do país.

Definido o racismo institucional e seus mecanismos de atuação, fica evidente o quanto ele se relaciona aos “filtros raciais” aqui mencionados. A filtragem racial funciona como uma das mais comuns e eficazes estratégias de manifestação do racismo institucionalizado. Ela possibilita às instituições manter a imagem de cumpridoras da lei, enquanto reproduzem o racismo de maneira pulverizada.

Retomando o debate sobre a burla à reserva de vagas para negros em concursos, podemos apresentar exemplos mais concretos dos “filtros raciais”. Para além da existência da previsão das cotas em um edital de seleção, quais elementos, mesmo que invisibilizados, incidem para implodir a efetividade da política?

Para a jurista Lívia Vaz, o conteúdo das provas, a formação das comissões de concurso, a pontuação dos currículos, as cláusulas de barreira – ou seja, a restrição da quantidade de candidatos por etapa do concurso – e o descumprimento dos percentuais na fase de nomeações, são exemplos da filtragem racial. Sua eficácia reside, na prática, em inviabilizar ou diminuir a aprovação de negros e negras na seleção, sem para isso precisar negar explicitamente as cotas.

O racismo institucional e sua filtragem precisam ser debatidos e combatidos. Não podem ser encarados como algo natural ou reduzido ao mau funcionamento da burocracia no Brasil. Eles são um produto do que ficou entranhado institucionalmente após séculos de segregações e violências contra a população negra. A filtragem racial deve ser banida como critério discriminatório.

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