O legado da negritude e seu apagamento
Yuri Costa e Marco Adriano Fonsêca – Defensor Público Federal e Professor UEMA // Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA
Durante muito tempo, esse silenciamento nos foi passado como algo natural, quase imperceptível ao longo de nossa educação formal. Somos herdeiros de um ensino embranquecido, acumulando referências quase exclusivamente de não negros nos diferentes ramos do conhecimento humano.
Hoje temos uma noção bem mais exata do esforço realizado para a aniquilação de personagens negras e negros ao longo de nossa história. Mais do que isso, sabemos o quanto essa foi – e ainda é – uma estratégia consciente da chamada branquitude. O silenciamento da contribuição africana e afrodescendente em nosso país é uma das principais formas de expressão do racismo. O Estado, em todas as suas dimensões, foi protagonista nesse processo e permanece sendo.
Para além da educação formal, predomina em nossa sociedade a sub-representação e a estigmatização da população negra. A literatura, os seriados infantis, as novelas e as peças publicitárias são alguns exemplos de espaços onde isso ocorre. Fomos e somos acostumados, por exemplo, a ver atores negros e atrizes negras relegados a papéis secundários, quando não servientes a personagens brancos.
São enormes as repercussões culturais e epistêmicas do predomínio de referências brancas no Brasil. Uma delas é o reforço do senso comum que alimenta a ideia de uma suposta inferioridade civilizatória de negros e negras e que propaga o estereótipo de subalternidade e subordinação dessa população.
Ainda que atualizadas e com nova roupagem, teorias de supremacia racial permanecem muito presentes em nossa sociedade. A defesa de uma hegemonia branca se nutre, em boa medida, da sistemática negação de saberes, conhecimentos, criatividade e das formas de pensar, agir e criar das pessoas negras. Ao se negar o protagonismo africano e afrodescendente em nossa história, facilmente se impulsiona uma hipotética superioridade branca.
Como estratégia racista de poder, o esquecimento da negritude se traduz enquanto mecanismo de desumanização. Inferioriza pessoas negras ao propagar sua suposta incapacidade intelectual para realizar “grandes feitos”. Vai além. Nega a própria existência do outro, no caso, dos negros e negras, e de sua história.
Durante muto tempo, o mito da democracia racial contribuiu para a naturalização do silenciamento aqui tratado. Ao pregar a inexistência do racismo no Brasil, ou pelo menos ao suavizá-lo, a democracia racial serviu como estratégia discursiva e ideológica para ocultar práticas de discriminação e racismo. Por ela se romantizou o processo de miscigenação, que, aliás, apontava para o branqueamento da sociedade brasileira. Todo esse quadro fortaleceu a ideia de que as manifestações culturais, religiosas e os saberes da população negra seriam subalternos, tendo sido naturalmente mesclados às referências hegemônicas, ou seja, brancas.
Junto com o encobrimento do legado de negros e negras no Brasil, buscou-se ocultar a violência à qual foi historicamente submetida essa população. Como exemplo, temos as atrocidades realizadas na escravização de africanos e de seus descendentes, com práticas de maus-tratos, abusos, mutilações e torturas. Dito de outra forma, houve ao longo de nossa história um duplo apagamento. Por um lado, implodiu-se a herança da negritude, por outro, encobriu-se a violência contra ela praticada.
O necessário resgate da história e da contribuição da população negra é alvo da preocupação da comunidade internacional. Não por outra razão, no dia 31 de agosto é comemorado o Dia Internacional das Pessoas Afrodescendentes. A data foi proclamada pelas Organização das Nações Unidas (ONU) em junho de 2020. Ela faz parte do esforço para se promover um maior reconhecimento e respeito pela diversidade da herança, das culturas e das contribuições das pessoas afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades. Serve também para fortalecer o respeito aos direitos humanos e o enfrentamento a todas as formas de racismo e de discriminação racial.
Em sentido parecido, a mesma ONU proclamou a Década Internacional de Afrodescendentes, comemorada no período de 2015 a 2024. O tema específico da década é “reconhecimento, justiça e desenvolvimento” e consiste numa ação estratégica para estimular os países a dar visibilidade à temática e a reverenciar as grandes contribuições dos povos e das pessoas que possuam raízes originárias em África, e que povoaram o mundo inteiro a partir da diáspora africana.
O Brasil deve fortalecer suas formas de combate ao apagamento do legado africano e afrodescendente. Precisamos cada vez mais resgatar a contribuição história de mulheres e homens negros com trajetórias marcantes em nossa história. Assim como devemos lembrar de personagens anônimos, mas igualmente vítimas do racismo e das violências voltadas à população negra. O reavivamento dessas histórias serve como contraponto ao racismo historicamente estruturado no Brasil.
Para finalizar, deixamos como referência algumas obras de ontem e de hoje. Elas podem contribuir para a retomada do legado da negritude em nosso país. São apenas exemplos, aqui apresentados com o propósito de despertar outras possíveis leituras. São elas: Úrsula e A escrava, de Maria Firmina dos Reis; Como ser um educador antirracista, de Bárbara Carine; O pacto da branquitude, de Cida Bento; Em busca de Dom Cosme Bento das Chagas, Negro Cosme, de Mundinha Araújo; Pequeno manual antirracista e Cartas para minha avó, de Djamila Ribeiro; Maria Firmina: a menina abolicionista, de Andréa Oliveira; Meninas sonhadoras, mulheres cientistas, de Flávia Martins; e Maria Firmina dos Reis, de Anita Machado.