opinião

O ENEM e a perspectiva antirracista no Brasil

Yuri Costa (*) e Marco Adriano Fonsêca (**) – Defensor Público Federal (*) e Professor UEMA, (**)Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA

A redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2024, aplicada no dia 3 de novembro, conduziu os participantes da seleção a produzir um texto com o tema “Os desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.


Sem sombra de dúvidas, o desenvolvimento dessa matéria exigiu dos candidatos um olhar crítico sobre a realidade social e racial brasileira a partir de uma perspectiva antirracista. Demandou ainda a elaboração de reflexões sobre as contribuições da população negra no processo histórico nacional, bem como acerca do combate às várias formas de discriminação racial nos dias atuais.


O ENEM é hoje a maior seleção pública existente no Brasil. É aplicado anualmente a aproximadamente cinco milhões de pessoas. Os temas de suas questões e, em especial, de sua redação, impactam imediata e consistentemente a sociedade, inclusive direcionando as abordagens e metodologias de escolas e preparatórios de todo o país.


Não só por isso a previsão do tema no Exame possui uma importância destacável. Ela demonstra o quanto as questões étnico-raciais estão consolidadas no debate público, cuja relevância não será afastada por posicionamentos contrários ao conhecimento científico ou que busquem reduzir o tema a algo de interesse apenas das pessoas negras. Uma adequada compreensão sobre o racismo e acerca da valorização da herança africana é, hoje, requisito básico para as competências exigidas de quem pretende acessar o ensino superior no Brasil.
O panorama antirracista abordado no ENEM está previsto nos paradigmas da Constituição Federal do Brasil de 1988, que elegeu a promoção do bem-estar, da igualdade e da justiça social como valores supremos de uma sociedade pretensamente fraterna, pluralista e sem preconceitos. De fato, nosso atual sistema constitucional estabelece as bases do chamado do Direito Antidiscriminatório, estando em sintonia com os tratados internacionais assinados pelo Brasil. Entre esses tratados ganha destaque a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que foi incorporada ao direito brasileiro em janeiro de 2022, tendo o mesmo nível que o texto de nossa Constituição.
Com a assinatura da Convenção, o Brasil se comprometeu perante a comunidade internacional a adotar internamente um modelo jurídico e político de enfrentamento ao racismo e a todas as formas similares de intolerância e discriminação. Enquanto Estado, reconheceu que o racismo representa a negação dos valores universais e dos direitos da pessoa humana, assim como contrário aos propósitos e princípios consagrados nos Direitos Humanos.


O compromisso internacional assumido pelo Brasil dialoga com o histórico de cobrança por parte da sociedade civil, sobretudo do movimento negro. Por isso mesmo, mais do que aspirações previstas em uma norma, exige do Estado a adoção de medidas concretas para proteção da herança social, cultural, política, intelectual e humana dos grupos ou indivíduos vítimas da discriminação racial. Sem isso, não podemos avançar para a promoção de condições equitativas na igualdade de oportunidades, bem como combater a discriminação racial em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais. Uma das principais dimensões pelas quais esses compromissos e propósitos se materializam é certamente a educação. É ela instrumento de promoção e concretização da cultura de paz e do respeito aos direitos humanos, da igualdade, da não discriminação e da tolerância. Numa sociedade que se propõe pluralista e democrática, deve a educação ser ferramenta que cria condições adequadas para que todas e todos expressem, preservem e desenvolvam sua identidade étnica e cultural.


Nessa linha, temos importantes leis brasileiras, como o Estatuto da Igualdade Racial e as Leis Federais n. 10.639/2003 e n. 11.645/2009, que instituíram a política educacional de promoção de igualdade racial no Brasil, estabelecendo as bases de um sistema educacional voltado ao reconhecimento e à valorização da herança e das contribuições sociais, econômicas, culturais e políticas da população negra brasileira.


Nesse contexto, a previsão direta e expressa de tema tão atrelado ao combate ao racismo na maior seleção para ingresso em instituições de ensino, o ENEM, converte-se em uma verdadeira política pública educacional de concretização dos compromissos aqui mencionados. Significa a tomada de posição pelo Estado, no sentido de afirmar seu compromisso com uma educação que valorize a equidade étnico-racial no Brasil.
Devemos aplaudir a iniciativa na elaboração do tema de redação do ENEM. Porém, acreditamos que nosso comprometimento com a pauta antirracista deve ir além desse reconhecimento. Por essa razão, os autores deste artigo decidiram há quase dois anos contribuir para amplificar o letramento racial e colaborar com o processo educativo antirracista. Desde de 2023, produzimos conteúdo voltado à reflexão sobre a discriminação racial no Brasil através de artigos publicados quinzenalmente nesta coluna. Além disso, acerca de um ano inauguramos o Podcast “Justiça racial: temas inadiáveis”, hospedado na plataforma Spotify, já com mais de duas dezenas de episódios.


Com isso buscamos dar visibilidade a temáticas e perspectivas de valorização da diversidade étnica, das contribuições históricas, culturais, econômicas e sociais da população negra brasileira, seus conhecimentos, saberes e cosmovisões. Nosso objetivo principal é provocar discussões sobre políticas institucionais para a defesa dos direitos e para o combate à discriminação e às demais formas de intolerância.


A abordagem de temática com a qual trabalhamos pelo ENEM 2024 demonstra que estamos no caminho certo. A iniciativa do Exame consiste num valioso instrumento de concretização das diretrizes normativas e educacionais antirracistas do Brasil. Viabiliza as contribuições históricas e o legado da população negra brasileira e de seus ancestrais. Estimula a construção e medidas positivas de ordem política, social, educativa e cultural adequadas para promover os direitos humanos, rumo a uma sociedade pluralista e sem preconceitos.

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