opinião

Neutralidade racial

Yuri Costa e Marco Adriano Fonsêca – Defensor Público Federal e Professor UEMA e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA

Em 2024, pela primeira vez o dia 20 de novembro foi feriado nacional.

 A data rememora a morte de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, assassinado em 1695. A celebração do feriado não ficou isenta de críticas. Muitos comentários em redes sociais defenderam que oficializar uma data comemorativa voltada a um grupo específico da sociedade, no caso, à população negra, seria alimentar separatismos e dificultar a união entre as raças em sociedade.

Para os adeptos desse discurso, não seria papel do estado tomar partido na defesa de um ou outro grupo étnico. No lugar disso, deveriam as instituições manter uma neutralidade sobre o tema. A superação da perspectiva racial seria a forma mais adequada de se alcançar uma sociedade objetiva e imparcial. No final das contas, defendem a ideia de que o racismo não existe se for ignorado.

A suposta visão neutra das raças circula por meio de discursos que já se tornaram lugar comum no Brasil. É divulgada a partir de frases como “eu não vejo pessoas negras ou brancas, vejo todas como iguais”. O argumento passa pela defesa de que uma sociedade mais justa e igualitária deve romper as diferenças raciais. Em sentido oposto, ler o mundo por meio de raças ou etnias significaria incentivar uma guerra cultural.

A neutralidade racial é também conhecida como color blindness, cuja tradução literal seria “cegueira da cor”. Tecnicamente, o termo em inglês remete ao daltonismo, um distúrbio de visão no qual as pessoas têm dificuldade ou impossibilidade de distinguir cores. Importante observar que a utilização dessa expressão para se referir à incapacidade de observar a diferença de grupos sociais por suas “cores” é termo capacitista, já que trata pejorativamente as pessoas com deficiência visual.

Na retórica da neutralidade racial, a melhor maneira de acabar com a discriminação é tratar os indivíduos da forma mais igualitária possível, sem distinção de raça, cultura ou etnia. No plano do Estado, esse discurso aponta para uma visão liberal das instituições. Reproduz a crença na igualdade formal, ou seja, de que a lei não pode dar tratamento diferenciado aos indivíduos, devendo ser indistintamente aplicada a todos e todas, no caso aqui destacado, independentemente dos marcadores étnico-raciais presentes em sociedade.

No entanto, ao assim conceber, a neutralidade racial desconsidera a realidade cotidiana e estrutural de preconceito, exclusão social e violência sofrida por grupos étnico-raciais específicos, a exemplo da população negra e indígena. Vista de forma crítica e contextualizada social e historicamente, a neutralidade racial aponta para uma falácia. Por isso precisa ser combatida.

Nesse sentido, a professora de Direito Constitucional Thula Pires defende o uso da teoria crítica da raça como contraponto à retórica da neutralidade. Para ela, tal teoria serve como instrumento que possibilita pensarmos como os códigos do racismo operam. Leva-nos a compreender o quanto discursos como a da neutralidade racial dificultam pensarmos o Brasil como um país estruturalmente marcado por discriminações e violências contra grupos étnicos, invisibilizando a existência do racismo e de suas consequências.

A postura crítica reivindicada por Thula permite entendermos que, ao fim e ao cabo, não existe neutralidade racial. Todos e todas temos raças, se não do ponto de vista biológico, mas concretamente nas dimensões social e política. A construção e a manutenção social das raças e do racismo produzem desigualdades, tensões e conflitos que tornam insustentável a retórica da neutralidade sobre o tema.

O discurso da neutralidade racial reproduz um modelo supremacista branco. Alimenta o privilégio da branquitude de supostamente não possuir raça e, por essa razão, poder se posicionar numa perspectiva “neutra” quando trata de questões étnico-raciais. Isso porque, predominantemente, as pessoas brancas não pensam sobre si a partir de uma perspectiva racial. Não se racializam, embora contribuam decisivamente para a racialização de grupos sociais que sejam delas etnicamente distintos.

O privilégio da branquitude, que se vale da retórica da neutralidade, deriva de uma hegemonia cultural. Possui raízes na construção histórica que tornou a cultura branca tida como normalidade. Traduz a imposição sobre o mundo ocidental, sobretudo a partir da colonização moderna, do padrão europeu de visão de mundo, tornando naturalizado o branqueamento dos corpos, da estética, do conhecimento científico, das artes, da religião, apenas para citar algumas dimensões da colonialidade. Junto com esse processo se consolidou um modelo de normalidade racial, não coincidentemente pautado no referencial branco.

De fato, somente é possível ser “neutro” no debate sobre questões étnico-raciais quando o padrão de normalidade contempla sua existência. Isso é possível a quem, por exemplo, tem um corpo ao qual seja socialmente permitido circular sem sofrer olhares preconceituosos, abordagens violentas ou mesmo sem ser exterminado. A essas pessoas é admitido o discurso da neutralidade racial. Consciente ou inconscientemente, elas não desejam se ver como “raça” e por isso sequer admitem discutir sobre o assunto, protegendo-se na retórica da neutralidade. Só é plausível a defesa de uma visão neutra por quem não é cotidianamente atingido pelas hierarquias raciais existentes em países como o Brasil.

É preciso perceber o quanto a retórica da neutralidade racial é uma narrativa de poder voltada à manutenção de privilégios. Ao buscar bloquear o debate sobre hierarquias raciais, ela contribui para o imobilismo. Vai além. Nega a luta histórica de grupos étnico-raciais vulnerabilizados pela conquista de direitos, enfraquecendo a pauta antirracista.

Raça e racismo permanecem sendo temas que devem ser enfrentados. Não podemos deles nos desviar a partir de recursos discursivos que, sob o argumento de uma suposta imparcialidade, dão as costas à realidade social. Recusar a análise do mundo sob a perspectiva étnico-racial não contribui para a busca da igualdade ou da união social, muito pelo contrário.

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