Mito da democracia racial
Yuri Costa (*) Marco Adriano Fonsêca (**) – Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**)
Em uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo, 97% das pessoas entrevistadas afirmaram que não tinham preconceito racial. No entanto, 98% delas admitiam conhecer pessoas que haviam discriminado alguém em razão da raça ou etnia. A sondagem ocorreu em 1988, ano de centenário da abolição formal da escravidão no Brasil.
A análise superficial desse resultado pode nos levar à seguinte conclusão: somos um país com racismo, mas sem pessoas racistas. Nas palavras da historiadora e escritora Lilia Schwarcz, comentando a mesma pesquisa, os brasileiros e as brasileiras parecem se sentir como uma “ilha de democracia racial”, cercada de racistas por todos os lados.
De fato, a chamada teoria da democracia racial pode ajudar a perceber por quais razões, como regra, negamos ser racistas, mesmo reconhecendo existir o racismo no Brasil e admitindo conhecer pessoas preconceituosas.
A democracia racial se apresenta como uma estrutura social na qual todas as pessoas, a despeito de sua raça ou etnia, possuem os mesmos direitos e são tratadas da mesma forma. Seria uma condição em que não existe exclusão racial, ou seja, em que as pessoas vivem em situação de igualdade, independentemente de raça, cor ou etnia.
Ela funciona para descrever uma sociedade idealizada, ou seja, desejada como modelo ou exemplo de convivência. Nesse sentido, serviu e ainda serve para a interpretação de contextos específicos de nossa história. Foi utilizada, por exemplo, para negar a existência de conflitos entre senhores e escravizados no Brasil colonial e imperial, ou pelo menos para suavizar os confrontos ali existentes. A violência da escravidão seria compensada pela fraternidade racial construída em nosso país.
Essa teoria é diretamente associada ao sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Na verdade, não foi Freyre quem primeiro apresentou elementos que legitimaram a ideia de democracia racial, mas certamente foi quem mais deu consistência e essa tese. Em Casa grande e senzala, livro de 1933, o sociólogo analisou a formação e a dinâmica da sociedade do Brasil colonial. Negou a hierarquia entre as raças e defendeu que a miscigenação, ou seja, a mistura entre etnias, gerou um povo mais forte e melhor preparado para o desenvolvimento.
Se por um lado Freyre se afastou do racismo científico então predominante, por outro baseou sua teoria na existência de uma conexão cordial e mesmo amistosa entre senhores e escravizados. A convivência supostamente harmônica foi interpretada pelo sociólogo como algo peculiar ao Brasil daquele contexto. A interpretação de Freyre encobriu a violência que marcou a escravidão em nosso país, já que acabava aceitando como consensuais, por exemplo, estupros de mulheres escravizadas baseados em ameaças, torturas físicas e psicológicas ou no nefasto jogo de punições e recompensas inerentes à escravidão.
Importante lembrar que Gilberto Freyre escreveu em um momento em que nossa intelectualidade buscava elementos que constituíssem a identidade nacional brasileira. A afirmação de que o Brasil era um país harmonioso caía muito bem a esse propósito, inclusive servindo como motivo de “orgulho nacional”. Não coincidentemente, a miscigenação passou a ser defendida como um dos principais símbolos de nossa identidade. Seria algo positivo e peculiar ao Brasil.
Ao longo do século XX, a teoria da democracia racial serviu para justificar nosso suposto contraste com relação a lugares onde havia evidente discriminação baseada na raça. Explicava, por exemplo, porque somos diferentes de países como os Estados Unidos e a África do Sul, que mantiveram sistemas legais de segregação racial durante décadas, mesmo após a abolição formal da escravidão.
A tese da democracia racial começou a ser questionada já na década de 1960. O sociólogo Florestan Fernandes foi o primeiro a afirmar que essa teoria não passa de um mito, ou seja, de uma fantasia. A principal crítica trazida por Fernandes foi a de que a democracia racial confunde miscigenação com harmonia social. Para o autor, a mistura entre as raças nunca significou uma real integração ou a ausência de conflitos entre elas. Muito menos sinalizou para a igualdade entre as etnias no Brasil.
A oposição à democracia racial como teoria válida foi sendo cada vez mais aprofundada. No final da década de 1970, o político, ativista e artista Abdias do Nascimento percebeu o quanto essa tese servia, sobretudo, para negar as formas peculiares do racismo no Brasil. O mito torna invisível um racismo que não se sustenta em normas expressamente segregacionistas, mas que nem por isso deixa de ser eficazmente institucionalizado. Para Abdias, a falácia da democracia racial funciona como ideologia racista, perpetuando preconceitos e discriminações veladas e mantendo a população negra à parte da plenitude de seus direitos.
Não há real democracia que se sustente apenas na mistura das raças ou na falta de normas explícitas de segregação. Esse quadro de suposta harmonia nunca gerou a igualdade de oportunidades entre pessoas negras e brancas. Também não trouxe uma equivalência na presença das raças em postos de direção e de comando. Permanecemos um país com diferenças profundas entre as etnias, traduzidas em praticamente todas as estatísticas sociais e econômicas.
A democracia entre as raças só será uma realidade quando as pessoas negras não sofrerem discriminação, preconceito, estigmatização e segregação. Até que isso ocorra, a democracia racial deve ser tratada como mito, como mentira. Até lá, é necessária a defesa de políticas de reparação histórica à população negra, buscando aproximar as questões raciais de uma efetiva justiça social