opinião

Escravidão e cidadania no Brasil

Yuri Costa (*) e Marco Adriano Fonsêca (**) – Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**)

Há um vínculo direto entre a construção da cidadania no Brasil e a escravidão que aqui existiu formalmente até 1888. Essa relação decorre, sobretudo, da coincidência histórica entre a importação e remodelação de teorias raciais que buscaram prolongar ao máximo o sistema escravista e a necessidade de definir os critérios de acesso à cidadania em um país que organizava suas instituições. Nesse sentido, o Brasil imperial (1822-1889) foi palco de debates e normas que moldaram o que significava ser cidadão e quem poderia ter esse direito. Muito do que ali foi definido dura até os dias atuais.

As doutrinas raciais que buscaram construir hierarquias entre pessoas e grupos no século XIX encontraram solo fértil em países como o Brasil. Aqui o questionamento da escravidão moderna ansiava por novos elementos que justificassem a manutenção do cativeiro. Além disso, as teorias de cunho racial serviam muito bem para a negação de direitos aos libertos, ou seja, àqueles que de alguma forma obtiveram a liberdade ao longo da vida, a exemplo da alforria.

Segundo a historiadora Hebe Mattos, foi um conjunto de teorias raciais, evolucionistas e eugenistas que potencializou a definição da cidadania no Brasil ao longo do século XIX. A legitimação racial da escravidão surgiu como contraponto a um conceito de cidadania com tons liberais e igualitários que predominava na Europa daquele contexto. Essas teorias foram utilizadas pelas elites para estabelecer freios a uma possível ampliação de direitos. Permitiram fixar restrições a determinados grupos, concebidos pelas elites como racialmente inferiores.

De fato, em países como o Brasil do século XIX, a restrição aos direitos civis de escravizados, de libertos e da população livre e pobre possuiu uma forte base racista. Raça e cidadania funcionaram como dois lados de uma mesma moeda.

Ainda para Hebe Mattos, tal quadro produziu o chamado “dilema liberal”, que surge em terras brasileiras com a propagação da doutrina política presente na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada na França revolucionária, em 1789. O documento consolidou a noção de cidadania cívica, ou seja, enquanto espaço de proteção e efetivação dos direitos civis, predominante em todo o século XIX.

Ocorre que o modelo político francês defendia a monarquia constitucional de base liberal e, pelo menos formalmente, considerava todos os homens cidadãos livres e iguais. O dilema citado por Mattos se dava justamente pela necessidade, no Brasil, de adequar essas doutrinas à manutenção da escravidão e à negação de direitos aos libertos. A saída encontrada pelas elites brasileiras foi relativizar as teorias liberais, moldando-as à realidade da escravidão. O direito à liberdade dos escravizados, por exemplo, poderia ser negado a partir da hegemonia do direito de propriedade de seus senhores. Esse quadro foi amplamente legitimado pela Corte, pelo Parlamento e pela Justiça do Império. O resultado foi a estratificação da condição de cidadão, estabelecendo-se diferentes “níveis” de cidadania. Num contexto em que o ordenamento jurídico de um Brasil recém independente estava sendo construí do, a fragmentação da cidadania serviu para a manutenção de hierarquias sociais. E não faltam exemplos desse processo em nossa história.

Ainda que dissolvida prematuramente e sucedida por uma Constituição outorgada por D. Pedro I, os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1823 evidenciam os debates em torno da cidadania no pós-Independência. Uma das principais preocupações da Assembleia foi a definição de quais indivíduos seriam considerados cidadãos. Nessa tarefa, rapidamente se percebeu que princípios centrais às doutrinas liberais, tais como simetria, universalidade de direitos, liberdade e igualdade, não poderiam vingar no Brasil, ao menos sem consideráveis relativizações.

Apesar da dissolução da Assembleia, a definição da cidadania na Constituição do Império de 1824 adquiriu contornos parecidos com a de projetos da Constituinte. Nesse sentido, o documento de 1824 reconheceu genericamente os direitos civis de todos os “cidadãos brasileiros”, dentre eles os ex-escravizados, desde que nascidos no Brasil. Não foram considerados cidadãos os libertos nascidos em África, pois eram tidos como estrangeiros.

Mas, para além da previsão geral de quem era cidadão, é preciso entender como o Império fragmentou os atributos da cidadania no Brasil, ao ponto de se poder falar que aqui existiram cidadanias, no plural. Tal fracionamento se relaciona diretamente com a preocupação das elites em não ampliar desordenadamente a condição de cidadão, pois isso desembocaria no risco de “subversão da ordem”, como usualmente referido naquele momento.

A estratégia utilizada foi a de “qualificar” a cidadania, ou seja, vincular o direito de atuar na vida cívica e a capacidade de participação política no Império a quem possuísse determinados atributos. Exatamente por isso, a Carta de 1824 trouxe uma rígida definição da cidadania política, atribuindo direitos dessa natureza apenas aos homens com comprovada renda e ocupação.

Além disso, para ter direitos políticos era preciso ter nascido no território nacional brasileiro e não ter sido um escravizado. Ao assim prever, afastou-se em absoluto os libertos dessa dimensão da cidadania.O mesmo raciocínio, de estratificação da cidadania em diferentes dimensões, serve para se pensar como as elites do Império trataram o acesso à aquisição de terras, a subvenções públicas, a postos em corporações militares, à possibilidade de exercer funções como a de jurado em tribunais, ao direito de liberdade mediante pagamento de fiança, dentre outros exemplos que poderiam ser citados. A definição da cidadania no contexto de estruturação do Estado nacional brasileiro tem concretas projeções sobre os dias atuais. Como projeto de preservação de hierarquias e de controle sobre pessoas escravizadas, libertos e população livre e pobre, o sentido da cidadania como direito de acesso à renda, bens e serviços nunca teve uma descontinuidade com relação à população negra, constituindo entraves e barreiras sistemáticas ao pleno exercício dos direitos civis e políticos por este grupo social, alimentando até hoje o racismo que estrutura nosso país.

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