opinião

Afinal, existem raças humanas?

Yuri Costa (*) e Marco Adriano Fonsêca (**) – Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**)

Há não muito tempo o Supremo Tribunal Federal foi levado a se manifestar sobre a definição jurídica de “raça” e “racismo”. Isso ocorreu em 2003, no julgamento de um habeas corpus proposto em defesa do escritor e editor gaúcho Siegfried Ellwanger. A ação ficou conhecida como “caso Ellwanger” e nela foi debatido se a divulgação de livros que negam a existência do holocausto no contexto da Segunda Guerra Mundial, tal como feito pelo escritor, caracteriza prática de racismo contra os judeus.


O principal argumento utilizado pela defesa de Ellwanger foi o direito à liberdade de expressão do autor. Além disso, afirmaram que a produção e divulgação de suas obras não configuram o crime de racismo, tal como previsto na Lei 7.716/89. Alegaram para isso que os judeus não constituem uma “raça”, e sim um “povo”, não passando o caso, no máximo, de mera discriminação étnica ou religiosa. Negaram também serem os judeus uma “raça” pelo simples fato de não existirem “raças humanas”, já que, do ponto de vista biológico, todas as pessoas fariam parte de uma mesma espécie. O raciocínio proposto era simples: sem a existência de raças, não há crime de racismo.


No fim do julgamento, a maioria dos ministros do STF afastou as alegações da defesa e negou o habeas corpus. A construção desse entendimento veio após longos votos dos juízes, boa parte deles preenchidos pelo debate em torno do que se deve entender juridicamente como “raça”, com o fim específico de identificar a ocorrência do crime de racismo.
Em boa medida, o que o Supremo fez no “caso Ellwanger” foi buscar dar contornos jurídicos a um debate há muito presente em sociedade e no campo científico. Questionou se é sustentável ou não a existência de raças humanas do ponto de vista biológico, assim como se ainda é adequado utilizarmos essa expressão.


Embora a palavra “raça” seja muito antiga e com uma origem história de difícil localização, foi no final do século XVII que surgiram tentativas mais consistentes de a utilizar para classificar a humanidade. O século seguinte alimentou a ideia de que existem diferenças básicas entre os indivíduos e a coletividade, capazes de definir uma divisão geral da humanidade em “raças”. No entanto, essas teorias ainda não eram predominantes, sendo em boa medida superadas por uma visão humanista que buscava naturalizar a igualdade entre as pessoas.
Foi na transição entre os séculos XVIII e XIX que ocorreu uma decisiva ressignificação do termo “raça”. A partir daí, a crença na diferença e nas hierarquias predominou, estabelecendo-se uma rígida relação entre patrimônio hereditário, aptidões intelectuais e inclinações morais na definição das “raças”. Uma leitura racista passou a predominar no mundo ocidental.


O mesmo século XIX viu surgir teorias como o evolucionismo e o darwinismo social, que buscaram entender o desenvolvimento das culturas através de um método comparativo. Relacionando biologia e história, estabeleceram hierarquias entre as “raças” a partir das características intelectuais e físicas de seus membros. Buscaram identificar diferentes níveis civilizacionais das sociedades a partir das potencialidades e aptidões de cada “raça”.


Esse foi um passo decisivo para a defesa do aprimoramento das “raças”, ou seja, da eugenia. A hierarquia entre as “raças” se tornou amplamente defendida e as instituições incorporaram o racismo em suas estruturas e práticas. O auge das teorias raciais foi certamente a legitimação da escravidão moderna pelo racismo, justificando a despersonalização dos escravizados, reduzindo-os à condição de coisas.


O redirecionamento das ciências biológicas no final do século XIX e início do XX mudou esse cenário. Áreas como a genética humana, a biologia molecular e a bioquímica foram centrais para se questionar a existência de “raças” na espécie humana. Elas descobriram os chamados “marcadores genéticos”. Constataram que nos genes humanos há fatores químicos imensamente mais determinantes a uma possível divisão biológica da humanidade em “raças” do que a pigmentação da pele ou do que qualquer outro elemento tradicionalmente utilizado pelas teorias raciais.


A biologia comprovou ainda que o patrimônio genético de dois indivíduos pertencentes a uma mesma “raça” pode ser facilmente mais distante que o de pessoas pertencentes a “raças” diferentes. Isso não significa que todos os indivíduos ou que todas as populações sejam geneticamente semelhantes. Retrata que as diferenças na genética das pessoas não são suficientes para as classificar em “raças”. A única conclusão possível foi a de que essa categoria não é uma realidade biológica, sendo o conceito de “raça” cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana.


No entanto, a implosão da justificativa biológica e científica das “raças” não impediu que esse conceito permanecesse sendo amplamente utilizado. Mais evidente ainda que não afastou a existência do racismo. O debate teve então que mudar de direção. Ao longo do século XX, cada vez mais se destacou que, na verdade, raça e racismo sempre tiveram uma origem eminentemente social e política. A história do racismo não cabe dentro da história das ciências. Ela se fez, sobretudo, pela sobreposição de grupos sociais a outros, distribuindo privilégios às custas da perseguição, segregação e mesmo eliminação de pessoas vulnerabilizadas.


Sob a ótica que hoje predomina, o uso do termo “raça” não é algo superado. Como categoria social, permanece eminentemente vivo. Se as “raças” não remetem a uma realidade cientificamente verificável, socialmente elas naturalizam classificações e hierarquias de grupos sociais. Enquanto ideologia, funcionam em nosso cotidiano como marcador social da diferença. Por isso “raça” não é uma expressão que deva ser simplesmente negada e abandonada.


No que toca a uma possível substituição ou junção do termo “raça” com outras categorias eventualmente mais adequadas, é indiscutível que conceitos como “etnia”, “diferença cultural” ou “identidade cultural” servem positivamente para trazer uma maior complexidade ao debate. Afinal, elas possuem um conteúdo social e cultural mais apropriado.
Mas é importante fazer um alerta. O antropólogo Kabengele Munanga lembra que, independentemente do conceito utilizado, as “raças” de ontem permanecem hoje subjugadas ao mesmo esquema de dominação e de exclusão. Para o professor, embora de uso mais agradável, noções como etnia, identidade étnica ou cultural não eliminam a base de toda essa discussão: o racismo.

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