Ações afirmativas: além das cotas
Yuri Costa- Defensor Público Federal e Professor UEMA e Marco Adriano Fonsêca- Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA
Recentemente, duas nomeações de aprovados em concursos públicos despertaram grande interesse da imprensa nacional. A primeira foi a posse do juiz Francisco Valdo Costa dos Reis, no Tribunal de Justiça do Piauí, filho de lavradores da cidade de Castelo do Piauí. A outra foi a nomeação da promotora de justiça Karoline Bezerra Maia, no Ministério Público do Pará, tida como a primeira promotora quilombola do Brasil, já que Karoline é natural do quilombo Jutaí, do município maranhense de Monção.
A trajetória de ambos os personagens tem características em comum. Suas famílias possuem origem interiorana e com trabalho baseado na lavoura. Estudaram na rede pública de ensino e entraram em universidades por meio de ações afirmativas. Além disso, o agora juiz e a nova promotora foram aprovados em seus respectivos concursos públicos concorrendo para cotas destinadas a grupos vulnerabilizados, no caso de Francisco Valdo, a pessoas negras, e no de Karoline, a quilombolas.
Inquestionavelmente, ambos tiveram na educação um relevante instrumento de emancipação social. Quanto a isso, o caso de Karoline Maia possui outras peculiaridades que merecem destaque. Como estudante, ingressou no curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão em 2008, por meio da aprovação nas cotas sócio-raciais para pessoas negras. A vaga foi conquistada por ser oriunda da rede pública de ensino. Em 2022, integrou o projeto “Identidade”, da Associação Nacional dos Procuradores da República, em parceria com a Fundação Pedro Jorge e a Educafro. O projeto tem como objetivo promover maior diversidade racial nos quadros do Ministério Público Federal e de outras instituições. Consiste na disponibilização de curso preparatório on-line para concursos públicos de carreiras jurídicas, palestras sobre temas diversos, auxílio no planejamento de estudos e oferta de dez bolsas de estudo com auxílio-financeiro patrocinado pela Fundação Ford.
A trajetória de Karoline também coincide com a realização do primeiro concurso público no Brasil com vagas para ingresso no Ministério Público destinadas especificamente a quilombolas, no caso, promovido pelo Ministério Público do Pará. A iniciativa teve seu embrião ainda em abril de 2019, na seleção para estagiários de nível superior daquela instituição. Naquele momento, seguindo requerimento da Associação dos Discentes Quilombolas da Universidade Federal do Pará, foram reservados aos quilombolas 5% das vagas da seleção de estágio. Posteriormente, a ação afirmativa do Ministério Público paraense foi aplicada no concurso para servidores, realizado em 2022. No ano seguinte, a cota para quilombolas foi incluída no concurso para a carreira de promotor e promotora de justiça.
O exemplo da nova promotora evidencia de forma categórica que as ações afirmativas vão muito além das cotas. Devem estar pautadas, dentre outras práticas, na promoção de programas de qualificação profissional, de preparação para concursos públicos e na oferta de bolsas de estudos, apenas para citar alguns exemplos ligados mais diretamente ao acesso a carreiras públicas.
Tais práticas, somadas, alcançam resultados concretos na promoção da equidade racial junto a instituições públicas brasileiras e, mais especificamente a partir dos dois casos aqui mencionados, junto às instituições do sistema de Justiça de nosso país. São instrumentos de acesso de grupos vulnerabilizados a postos de representação e de decisão, contribuindo para a diversidade e para a democratização da esfera pública.
Evidenciam, ainda, a necessidade de implementação, visibilização e ampliação de boas práticas em políticas públicas voltadas à equidade racial. Nesse sentido, promovem a mudança da perspectiva do imaginário social comum quanto ao papel de negros, quilombolas e indígenas na sociedade. Por isso mesmo podem e devem ser replicadas também para a iniciativa privada, a exemplo de programas de Trainee, de estágio e de residência para estudantes universitários.
As ações afirmativas buscam alterar o quadro de desigualdades historicamente predominante no Brasil. Conforme dados do Censo do IBGE divulgados em 2023, a composição da população brasileira é integrada em sua maioria por pessoas negras, totalizando 55,5%, sendo 10,2% de pretos e 45,3% de pardos. Tal proporção não se reflete em nenhum índice que aponte para a garantia de direitos de cidadania em nosso país. O acesso a elementos como trabalho formal, renda, escolaridade, moradia, saneamento básico, dentre outros, escancara os privilégios da população não negra. A discrepância acompanha igualmente o alcance de negros e negras a postos de poder e de decisão em instituições públicas e privadas.
Nunca é demais destacar que o Brasil assinou a Convenção Interamericana contra o Racismo e a Discriminação Racial, norma incorporada com status de Emenda Constitucional em janeiro de 2023. A Convenção determina a adoção de ações afirmativas com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades.
Nessa linha, o cenário dos debates sobre questões raciais deve ser pautado a partir da perspectiva de enfrentamento ao racismo estrutural. Deve valorizar como instituições públicas e privadas podem concretamente contribuir para a diminuição do distanciamento entre um discurso jurídico idealizado e a prática das políticas públicas.
Ontem e hoje, são necessários o debate e a implementação de ações afirmativas por instituições públicas e privadas. Esse é certamente um dos caminhos mais seguros e promissores para a promoção da equidade racial e para o respeito às peculiaridades de grupos sociais minoritários e de povos e comunidades tradicionais. Serve também como caminho para que possamos reverter os indicadores históricos de negligência, opressão e violência contra esses grupos, fazendo com que um dia, quem sabe, casos como o do juiz Francisco Valdo e o da promotora Karoline deixem de ter tamanho destaque na mídia. Não por deixarem de ser relevantes, mas por terem se tornado corriqueiros.