A perspectiva racial na Justiça brasileira
Yuri Costa(*) e Marco Adriano Fonsêca(**) – Defensor Público Federal e Professor UEMA(*) e Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA (**)
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou recentemente o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial. O documento assume compromisso com a implementação de mudanças estruturais de combate ao racismo e com a promoção da equidade racial no Poder Judiciário brasileiro. Não coincidentemente, foi lançado no dia 19 de novembro, véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, data que pela primeira vez foi feriado nacional.
O CNJ é uma instituição pública que tem como função aperfeiçoar o trabalho do Judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e de processos. É um órgão do Poder Judiciário com sede em Brasília e atuação em todo o território nacional. O Conselho foi criado pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, sendo instalado efetivamente no ano seguinte.
O protocolo do CNJ consiste num conjunto de diretrizes e orientações técnicas de aplicação obrigatória em todo o Poder Judiciário nacional. Traz reflexões e aponta possíveis soluções para os impactos do racismo, em suas mais variadas dimensões, para as atividades da Justiça no Brasil.
O documento certamente vai repercutir na forma com que juízas e juízes irão interpretar e aplicar o Direito em casos específicos. A principal proposta é que os aspectos raciais sejam considerados nos processos judiciais, observando-se sua relação com outras interseccionalidades, a exemplo das questões de gênero, deficiência e orientação religiosa, entre outras. O protocolo aponta para a necessidade de mudança de paradigmas na condução de processos e na tomada de decisões, sempre a partir da adoção de interpretações que observem as particularidades dos grupos histórica e racialmente discriminados. Em síntese, pretende orientar a Justiça numa análise mais aprofundada das desigualdades raciais que impactam as demandas judiciais no Brasil.
A iniciativa se insere no esforço do CNJ para cumprimento dos objetivos estratégicos do Pacto Nacional pela Equidade Racial no Poder Judiciário. Soma-se a outras iniciativas que combatem o racismo estrutural no âmbito da Justiça, sensibilizando e qualificando juízas e juízes sobre os contextos históricos e sociais do racismo no Brasil.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial se alinha, ainda, às orientações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já reconheceram que o enfrentamento ao racismo deve ser tratado como questão central no Brasil e que deve ser considerado nos julgamentos dos processos, evitando-se a produção e reprodução de práticas discriminatórias.
A construção do documento aqui comentado buscou oportunizar a participação de instituições públicas e privadas, com representantes de diferentes segmentos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia, da Defensoria Pública, de instituições públicas e privadas de pesquisa e ensino e da sociedade civil. Nesse sentido, foi criado um grupo de trabalho multidisciplinar e interinstitucional, realizando-se consultas públicas para a obtenção de sugestões e contribuições da sociedade em geral.
O texto final do protocolo apresenta três dimensões fundamentais para sua implementação: 1) a formação continuada de todo o corpo funcional do Judiciário, incluindo os Tribunais Superiores, com cursos obrigatórios sobre racismo e equidade racial; 2) o monitoramento contínuo de práticas, procedimentos e decisões do Judiciário, por meio de estudos analíticos sobre gênero, raça, cor e identidade de gênero; e 3) a supervisão correicional, que acompanha e identifica padrões discriminatórios e estereótipos raciais e de gênero por parte dos órgãos fiscalizados.
O protocolo está organizado em cinco partes. Sua introdução apresenta princípios fundamentais e normativas nacionais e internacionais sobre o combate ao racismo. O segundo capítulo aborda conceitos como racismo estrutural, vieses implícitos e interseccionalidades, contextualizando o problema com base em estudos acadêmicos. Na terceira parte, o protocolo apresenta orientações práticas, indicando recomendações e roteiros para aplicação em diferentes etapas dos processos judiciais, incluindo análise de provas e correção de tendências no momento do julgamento. Orienta, por exemplo, sobre como lidar com grupos vulnerabilizados, corrigir vieses raciais na análise de provas e incorporar marcos legais em decisões.
O quarto capítulo concentra a abordagem quanto aos impactos do racismo nos mais variados ramos do Direito, como Direito de Família, Direito do Trabalho, Direito Eleitoral, Infância e Juventude, Direito Previdenciário, Processo Penal, Direito Civil e Direitos Difusos e Coletivos. Traz importantes apontamentos sobre a aplicação em temas como seletividade penal, filtragem racial, direito à terra e combate à discriminação no mercado de trabalho e no processo de adoção de crianças e adolescentes. Por fim, o quinto capítulo apresenta estratégias de implementação do documento, incluindo a capacitação contínua de juízas e juízes e de servidoras e servidores do Judiciário. Propõe também o monitoramento de resultados, em sintonia com os parâmetros adotados no âmbito do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), grupo temático do CNJ.
Desejamos que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial inaugure um novo momento no Judiciário brasileiro, avançando na perspectiva crítica das repercussões do processo judicial em sociedade. Esperamos que seja instrumento para a consolidação das diretrizes do Estado Democrático de Direito, assegurando o pleno e livre exercício dos direitos individuais, sociais e políticos como valores básicos de uma sociedade que se pretende fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Que sirva o documento como ferramenta para que as instituições do Sistema de Justiça interpretem e apliquem o Direito a partir das diferentes cosmovisões, das vivências e das expectativas dos distintos setores da população, constituindo-se num instrumento antirracista que traga avanços na perspectiva da equidade racial em nosso país.