A falsa abolição de 1888
Yuri Costa- Defensor Público Federal e Professor UEMA e Marco Adriano Fonsêca- Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA
O mês de maio é marcado pelo Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, comemorado no dia 13. A data ressignifica a retórica da abolição da escravatura, por essa razão sendo definida no mesmo dia do mês em que foi assinada, em 1888, a Lei do Império n. 3.353, mais conhecida como “Lei Áurea”, que extinguiu formalmente a escravização de pessoas no Brasil.
A partir do contexto de desigualdades que caracteriza a sociedade brasileira e de sua relação com o cenário étnico-racial do país, é preciso refletir sobre os reais significados da extinção da escravidão em 1888 e, sobretudo, das consequências de uma abolição não acompanhada de políticas de reparação e de assistência ao povo negro.
Inicialmente, convém lembrar que o Brasil foi o país que recebeu o maior número de negros e negras escravizados nas Américas. Foram aproximadamente 40% dos escravizados africanos, num total de, pelo menos, cinco milhões de pessoas. Fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Fizemos isso por meio da já referida “Lei Áurea”, que possui apenas dois artigos. O primeiro declara extinta a escravidão no Brasil e o segundo determina a revogação de normas que contrariassem a nova lei.
Como se pode perceber, a lei de 1888 não teve como preocupação implementar qualquer tipo de política de inclusão ou de emancipação socioeconômica para negros e negras alforriados, seja na área da educação, trabalho, habitação ou regularização fundiária.
Para entender as consequências dessa omissão, é preciso contextualizar a realidade da população negra brasileira naquele momento histórico. O modelo de colonização exploratória adotado na América Portuguesa e no Brasil pós-Independência teve uma base escravagista, utilizando o trabalho forçado de indígenas e, posteriormente, de africanos.
Desde meados do século XVI, Portugal foi aos poucos estruturando um sistema de desenvolvimento econômico sustentado pelo tráfico negreiro. Instituiu-se uma dinâmica de reprodução do racismo e de violências que se valeu do critério étnico-racial para se sustentar.
A legitimidade da escravidão utilizou como retórica a naturalização de desigualdades, colocando negros e negras como pessoas subalternas e racialmente inferiores. Do ponto de vista formal, os escravizados sequer eram considerados pessoas, mas sim mercadorias. Tal previsão estava, por exemplo, nas chamadas Ordenações Filipinas de 1603, que foram incorporadas pelo Brasil independente, vigorando durante o Império.
A coisificação dos escravizados contribuía para a negação e apagamento das culturas, saberes e religiosidades africanos e afro-brasileiros. Consolidou um sistema jurídico de discriminações e violências, legitimando não apenas a escravidão, mas a negação de acesso a direitos a negros e negras libertos.
Como exemplo, temos a primeira lei de educação do Brasil independente, a Lei do Império n. 1, de 1837. Ela determinava que os escravizados e os africanos, ainda que livres ou libertos, eram proibidos de frequentar as escolas. Em 1854, o chamado Decreto Couto Ferraz manteve a proibição do acesso à educação aos escravizados.
Somente em 1878, o Decreto n. 7.031-A permitiu a matrícula de negros libertos maiores de quatorze anos no ensino primário noturno e, no ano seguinte, o Decreto n. 7.247 instituiu o ensino primário obrigatório para todas as pessoas, dos sete aos quatorze anos de idade, permitindo a matrícula de escravizados nas escolas públicas. Portanto, contado a partir do início do tráfico negreiro, foram necessários quase quatro séculos para que houvesse permissão de acesso dos negros à educação formal.
No mesmo contexto do Brasil imperial, a chamada Lei de Terras, de 1850, impediu que negros se tornassem donos de propriedades. Em outro sentido, a mesma legislação previu incentivos do governo à vinda de colonos europeus ao país, como a destinação de terras e o estímulo a contratações de imigrantes por particulares e pelo próprio Estado, além da concessão da nacionalidade brasileira. Sem dúvidas, houve no Brasil uma política pública de imigração eminentemente racista, que privilegiou europeus e pretendia, inclusive, o branqueamento da população, reforçando a estigmatização e o preconceito contra negros.
Nesse cenário, é possível afirmar que, antes e depois da lei abolicionista de 1888, os elementos que poderia contribuir para uma verdadeira emancipação de escravizados e ex-escravizados foram sistematicamente negados à população negra. O trabalho digno e remunerado, o acesso à educação formal, o direito à moradia e à propriedade, o respeito a religiões de matriz africana, dentre outras garantias, foram expressamente proibidos ou, na melhor das hipóteses, deixaram de ter incentivo pelo Estado.
Portanto, a omissão da lei de 13 de maio de 1888 com relação a medidas de reparação e de assistência a negros e negras se traduz numa omissão enfaticamente reprovável. Na prática, nossa abolição se converteu em uma disposição legal singela e irresponsável com relação aos quase quatro séculos de escravização. Ela lançou negros e negras antes escravizados à condição formal de pessoas livres, porém abandonados à própria sorte pelas instituições que, antes, legitimavam e legalizavam o comércio e a exploração da mão de obra escravizada.
Observado o cenário dos dias atuais de marginalização social e econômica da população negra, encontramos no pós-abolição um dos principais marcos históricos de produção dessa realidade. Foi justamente nesse cenário que, por exemplo, surgiram as primeiras favelas no Brasil, com a ocupação de áreas de risco em morros e nas proximidades de córregos. O exemplo evidencia as origens do racismo ambiental que se manifesta até os dias atuais, hoje agravado pela crise climática.
Uma atenção mais específica ao atual mercado de trabalho possibilita percebermos alguns indicadores registrados pelo IBGE. Em 2022, negros e negras representavam 64,5% das pessoas consideradas desocupadas e 66,26% dos denominados subutilizados. Os negros ocupam a grande maioria dos postos de trabalho com menores rendimentos, correspondendo a 66,4% dos trabalhadores domésticos e aos mesmos 66,4% na construção civil. Em contrapartida, ainda segundo dados do IBGE, 69,7% dos cargos gerenciais são ocupados por pessoas brancas, enquanto 27,6% por negros e negras. Quanto à renda, os brancos recebem, em média, 64,2% a mais que as pessoas negras.
Não há como descontextualizar a realidade do atua cenário étnico-racial brasileiro como decorrente do processo histórico e estrutural de escravização, de discriminações e da negação de direitos à população negra. Daí a necessidade de compreensão das desigualdades sociais a partir de uma perspectiva antirracista, e de como as instituições públicas e privadas podem contribuir efetivamente para a minimização do distanciamento entre o discurso jurídico e a prática das políticas públicas.
Somente assim poderemos promover ações afirmativas para a equidade racial, atendendo às peculiaridades de grupos sociais vulnerabilizados e revertendo os indicadores históricos de negligência, de opressão e de violência contra negros e negras no Brasil