A branquitude e seu pacto
Yuri Costa e Marco Adriano Fonsêca Defensor Público Federal e Professor UEMA Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM e UEMA
Ela se baseia na suposta supremacia da população branca sobre outros grupos sociais. Produz e legitima o preconceito, a violência e a segregação contra grupos racializados, trazendo privilégios materiais e simbólicos a quem dela se beneficia.
Branquitude não significa simplesmente o somatório das pessoas brancas. Ela é algo bem mais profundo que isso. Está relacionada a uma forma peculiar de pensar o mundo, baseada, como já mencionado, na ideia de superioridade de grupos sociais sobre outros.
Sua origem histórica é bem antiga e se confunde com a justificativa do racismo por meio da cor da pele e da origem, iniciada no século XVI. Apesar disso, o uso da expressão “branquitude” é algo bem mais recente. Somente a partir das últimas décadas do século XX foi dada maior relevância a estudos sobre raça que iam além da preocupação com pessoas negras, ou seja, com a negritude.
A mudança ocorreu quando se percebeu que o entendimento do racismo e de sua complexidade não viria apenas da análise de grupos sociais tradicionalmente racializados. Era preciso compreender os elementos que tornaram a população branca hegemônica, os mecanismos que procuram a manter nessa posição e os privilégios que decorrem dessa condição.
O estudo da branquitude possibilita percebermos o “branco” como uma construção social, ou seja, enquanto uma invenção que possui uma história datada e decifrável. Sem dúvidas, foi durante o processo de colonização da África e das Américas que se constituiu a branquitude. A colonização possibilitou aos europeus criarem uma identidade comum, branca, forjada a partir do contraste com africanos e indígenas.
As classificações raciais tiveram papel importante no processo de colonização e na formação dos Estados contemporâneos. A raça sempre foi elemento central no projeto político de colonização. O racismo justificou a escravidão, definiu hierarquias sociais e níveis de cidadania e, ainda, legitimou o domínio do Estado e de recursos econômicos por determinados grupos sociais.
Enquanto processo histórico, a branquitude projetou um mundo onde o branco se afirmou como padrão universal de humanidade. Sua visão de ciência, de religião, de trabalho, de estética, de desenvolvimento, apenas para citar alguns elementos, tornou-se hegemônica. Tudo o que estivesse de fora dessa concepção devia ser perseguido, censurado e até mesmo destruído. Não coincidentemente, a colonização moderna da América e África consistiu no maior processo de epistemicídio conhecido, no qual sistematicamente se destruiu boa parte das contribuições sociais e culturais não europeias.
O certo é que a branquitude nunca foi superada enquanto ideologia de dominação que define privilégios e vulnerabilidades. Mesmo após a colonização histórica, ela permanece presente, sendo reinventada e transmitida de geração em geração. Se antes ela se afirmada por meio de processos explicitamente violentos, a exemplo da escravização de negros e indígenas, hoje ela possui formas mais sutis de reprodução, mas nem por isso menos eficazes.
Para entender a maneira como a branquitude se reproduz atualmente, a psicóloga e militante Cida Bento fala em um “pacto de cumplicidade”. Um acordo não formal e implícito entre as pessoas brancas. Uma aliança que todos entendem e perpetuam, ainda que façam isso por vezes inconscientemente.
O principal propósito do pacto da branquitude é preservar privilégios e delimitar posições sociais a partir da condição racial. Ele assegura que, não coincidentemente, as formas e estratégias de manutenção do racismo sejam similares, ainda que executadas por diferentes agentes e em locais distintos. O acordo garante que não se rompa a estrutura racial que privilegia as pessoas brancas.
O pacto da branquitude não elimina o fato de que as pessoas brancas competem entre si, mas assegura que tal competição se dê apenas entre segmentos que se consideram “iguais”. Ele controla o acesso dos não-brancos a espaços de privilégio, filtrando quem pode ali estar e em quais condições.
Ainda para Bento, o pacto da branquitude possui um componente eminentemente narcísico. Tem como base a autopreservação da branquitude, mantendo-a como “normalidade”. Como consequência, exclui o que seja diferente e que, por essa razão, ameace a hegemonia do privilégio branco. No final das contas, essa cumplicidade tem como base o medo da perda de regalias materiais e simbólicas.
No entanto, o pacto da branquitude somente é possível por meio do esquecimento, ou melhor, do encobrimento de tudo aquilo que historicamente produziu as vantagens hoje usufruídas pela população branca. Por essa razão, o pacto de cumplicidade também é um pacto de silêncio.
Ele busca ocultar uma série de atos vergonhosos que possibilitaram a existência de privilégios atuais, tais como expropriações, saques, escravização, genocídios, dentre outros.
Embora não reconhecida publicamente, essa é a essência do pacto: as novas gerações podem ser beneficiárias de tudo que foi acumulado, mas têm que se comprometer, ainda que tacitamente, a perpetuar esse legado e a transmiti-lo para as gerações seguintes. A manutenção dessas vantagens vem, quase sempre, justificando privilégios como merecimento. Nesse sentido, o discurso da meritocracia é uma das principais formas de reprodução da branquitude.
Uma observação final. A análise da branquitude não significa um ataque às pessoas brancas ou uma tentativa de as colocar numa condição de vulnerabilidade similar à qual se situa a população não-branca. Debater a branquitude reflete um necessário esforço para a compressão do processo histórico que construiu privilégios para algumas pessoas e desvantagens para outras. Mais do que isso, traduz a tentativa de superar a desigualdade racial no Brasil.